É possível acreditar na Justiça no Brasil?

Por Julio Menezes Silva (IPEAFRO)

Por telefone, conversei com o Dr. Daniel Teixeira, advogado e coordenador de projetos do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT). O jovem de 36 anos advogou em 2016 para o FOPIR em quatro relatorias de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU), em relação ao relatório da CPI dos assassinos de jovens, que concluiu haver um genocídio em curso no Brasil contra a população negra e jovem. Ou seja: é o Estado brasileiro reconhecendo em um documento oficial o próprio  genocídio. “Se o Estado brasileiro diz isso, e no próprio documento estipula quais são as recomendações para o reverter o quadro, por quê esse documento está engavetado? É preciso desengaveta-lo justamente para que a gente tenha as medidas aplicadas na prática” provoca Teixeira. No papo, registrado abaixo, Daniel comenta ainda sobre o Supremo Tribunal Federal (STF), fala do histórico das leis racistas e “para inglês ver”, convoca a sociedade civil e, claro, fala com propriedade sobre a Justiça brasileira.  E foi justamente sobre a Justiça que partiu o primeiro questionamento que guiou toda a conversa: 

É POSSÍVEL ACREDITAR NA JUSTIÇA NO BRASIL?
É uma pergunta complexa. Você sabe que isso nos leva a discutir o racismo institucional também no sistema de justiça. Eu acho fundamental enfocar que a justiça convive enquanto sistema, com o sistema político. E há um caminho de mão dupla de influências um do outro. Essa é uma primeira questão: o sistema jurídico, o sistema de justiça tem uma influência importante que vem do sistema político. Quando a gente está em um momento desfavorável para conquistas históricas que temos, principalmente nos direitos fundamentais, em equidade racial, a gente tem a repercussão disso no sistema de justiça. Obviamente (o sistema) está muito afetado pelo racismo institucional e estrutural que fazem parte da história do Brasil.

LEIS RACISTAS OU “PARA INGLÊS VER”
Então, quando a gente pensa legislação antirracista e a gente pode ir para trás em relação a isso, não é por acaso que a expressão “para inglês ver” vem justamente das leis abolicionistas. “As leis para inglês ver”, ou seja, as leis que a Inglaterra pressionava o Brasil para que adotasse. Mas que o Brasil fazia só “para inglês ver”. Temos a Lei Eusébio de Queiroz que proibiu o tráfego de escravizados negros para o Brasil a partir de 1850. Porém isso foi aprovado “para inglês ver”. Como a gente sabe, isso continuou acontecendo (o tráfico de escravizados) e muito. A Lei do Sexagenário, a Lei do Ventre Livre de 1871, importante nesse debate sobre genocídio, que diz que filhos de ventre de mulheres escravizadas seriam livres. Porém, quando a gente pega a cabeça do artigo primeiro e desce para parágrafo desse artigo, a gente vê um pouco de como funciona o racismo. A gente tinha uma decisão que uma decisão que se atribuiu ao então senhor de escravizado (que dizia) que quando essa criança completasse 18 anos, ele (o senhor de escravizados) tinha uma opção de receber indenização do Estado brasileiro para compensar a liberdade dessa criança ou o trabalho compulsório dessa criança até os 21 anos. Tem a Lei Afonso Arinos que tornou em 1951 contravenção penal o racismo.  Hoje, podemos falar da lei 7.716 de 1989, que tipifica o racismo, mas que as condenações são raríssimas. Portanto, esse é o sistema de justiça que nós temos historicamente e não à toa hoje funciona a partir da incidência do racismo institucional. Por isso, para que a gente tenha ações efetivas no âmbito judicial, é necessário ter também pressão e articulação política. Só assim a gente consegue ter a voz ouvida também na justiça. A ideia de justiça puramente jurídica não corresponde à realidade. Nesses momentos em que houve uma articulação em torno de bandeiras históricas do movimento negro, tanto o parlamento quanto o poder executivo e o sistema de justiça tiveram que adotar algumas medidas por exigência dessa população articulada.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Ainda temos um Supremo Tribunal Federal com algumas decisões importantes em direitos humanos e que preserva uma composição um tanto ainda favorável aos direitos humanos no Supremo, A gente tem sim uma via no Supremo Tribunal Federal e portanto no sistema de justiça do Brasil importante ainda para demandar decisões que ainda preservem as conquistas históricas em um contexto desfavorável.

FOPIR E ATUAÇÃO INTERNACIONAL
Advoguei para o FOPIR em quatro relatorias de Direitos Humanos das Organizações das Nações Unidas (ONU) em relação ao relatório da CPI dos assassinos de jovens de 2016, que concluiu, ela própria (a CPI), que há um genocídio em curso no Brasil contra a população negra e jovem. Portanto, é o Estado brasileiro dizendo isso. Se o Estado brasileiro diz isso, e no próprio documento estipula quais são as recomendações para o reverter o quadro, por quê esse documento está engavetado? É preciso desengavetá-lo justamente para que a gente tenha as medidas aplicadas na prática. Isso foi uma ação do próprio FOPIR: foram quatro petições para as relatorias de Racismo, Povos Africanos e Descendentes, Execuções Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais e Questões de Minorias. São quatro relatorias da ONU. Ainda não houve uma visita desses relatores ao Brasil, mas eles já estão cientes do que ocorre aqui. No entanto, o sistema de Direitos Humanos da não é tão forte como deveria ser. Muitas vezes não há orçamento, uma série de questões. Poderia caber um papel da sociedade civil para trazer os relatores ao Brasil.  Ou ainda incidir no Conselho de Direitos Humanos da ONU, nas sessões que ocorrem em Genebra, é uma possibilidade. Ou aguardar a visita de uns desses relatores ao Brasil, mas isso demanda uma articulação com o Governo brasileiro que hoje não tem uma visão de parceria com ONU – ao contrário. Tudo isso depende uma articulação político-social.

CONJUNTURA JURÍDICA NO BRASIL
Acredito que continua sendo importante a atuação da jurisdição constitucional. Isto é, falar em termos do Supremo Tribunal Federal como um tribunal que ainda tem tomado decisões (importantes), como essa de criminalização da homofobia. Esse foi um passo importante do Supremo ao assegurar direitos humanos da população LGBTQI+. O Supremo Tribunal ainda representa um tribunal que pode ser considerado na litigância no Brasil. Essa é uma primeira questão. E acho que é importante cada vez mais a ação coletiva, é o que a gente chama no direito de Tutela Coletiva, que é a atuação com a Lei Civil Pública, que é uma lei que permite que se entre em defesa de direitos coletivos e difusos. Ou seja, direitos de grupos historicamente discriminados como é o caso da população negra no Brasil. Isso tudo é uma construção que infelizmente leva tempo para tramitar processos etc, mas que é importante fazer porque coletivamente pode gerar resultados positivos. Acho importante também esse olhar para as conquistas já realizadas. A partir do momento que a gente tem a possibilidade de retrocesso, é preciso judicializar aquilo que for viável. Quando a gente pensa os direitos que estão assegurados nos diferentes diplomas legais que a gente tem, que foram duramente conquistados.

VAZA-JATO, IMPARCIALIDADE JURÍDICA E O JUIZ SÉRIO MORO
No nosso sistema acusatório costuma ter uma equidistância entre o juiz e cada uma das partes. Isso é o fundamento do nosso sistema. Portanto, é óbvio que quando isso é quebrado você tem a ilegalidade sendo praticada. Isso está na Lei Orgânica da Magistratura, está no Código do Processo Penal, está nos Tratados Internacionais. É lógico que as pessoas falam sem acessar os carros. Sem ter todas as informações. Tem esse porém né não somos advogados os autos, sem ter todas as informações… tem esse porém: não somos advogados nos autos. Mas o que chega pelas notícias é que teria havido uma quebra nesta imparcialidade do juiz. E sendo assim, o princípio do devido processo legal se torna também violado. É simples juridicamente, não comporta grandes complexidades. Infelizmente, tem algumas coisas que escapam da visão geral da população que entende, às vezes, que o juiz é um chefe de força-tarefa. Na verdade, não é. Quem é chefe é o Procurador. O juiz deve ser imparcial, equidistante.  

SEMINÁRIO GENOCÍDIOS CONTEMPORÂNEOS, REAGIR É PRECISO
É importante a gente entender que o genocídio acontece de várias maneiras antes do gatilho ser puxado. Quando a gente pensa o direito à infância: quem tem direito à infância? Quem é visto como menor e não como criança ou adolescente? Menor é uma figura do Código de Menores, dentro da Constituição Federal. É aquela figura que era vista como em situação irregular, inclusive por condições socioeconômicas, muitas vezes era encaminhado para internações (Funabem, Febem etc). E houve uma passagem, a partir da Convenção dos Direitos da Crianças, a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente, para a condição de proteção integral de crianças e adolescentes e não mais da figura do menor. Ainda que vê a criança negra nesse lugar, e aí ela não está em pé de igualdade para receber cuidados, investimento do ponto de vista da sua trajetória. Isso tudo vai criando a situação que lá na frente vai desaguar nas latas taxa de homicídio para crianças e jovens negros. É fundamental que haja um olhar para esse sistema de garantias de direitos e óbvio que dentro de uma ótica de prevalência da dignidade humana, de respeitos aos direitos humanos. Falar isso hoje parece uma utopia. Então, para resistir na prática, esse aquilombamento que coletivos como o FOPIR e vários outros têm feito. Ë não estar sozinho nesse momento em termos de atuação que possa fazer incidência nesses vários espaços em que a gente tem. É importante dizer: muito o que acontece na política acontece em âmbito local. O cidadão tem muito mais perto de si o município do que a união. Quem concretiza aquilo que acontece na vida dele no dia a dia é muito mais quem está no município, nas instituições, sociedade civil enfim. É nesse ambiente que é possível articular coletivamente outras perspectivas. Nesse momento isso é fundamental.