Acervo: Odara
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O Brasil tem índices de assassinatos superiores a países em guerra, tal como o Afeganistão, Somália e Sudão. Segundo dados do Mapa da Violência 2016, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), entre 1980 e 2014, os homicídios cresceram 592,8% no Brasil. Só em 2014 foram 44.861 mortes por arma de fogo no país, o que significa 123 vítimas diárias, 5 óbitos por hora.

Contudo, os alvos desses crimes não são aleatórios, os marcadores de gênero, classe, raça e geração são preponderantes na composição dos grupos potenciais a serem vitimados por mortes violentas. O gênero e a geração são decisivos. Ser homem multiplica o risco de morte por arma de fogo em quase 12 vezes. No ano de 2014, 94% das vítimas eram homens e 60% delas eram jovens entre 15 e 29 anos (FLACSO, 2016). Mas este fenômeno é potencialmente agravado com a intersecção entre o gênero e os sistemas de classe, raça e geração, como demonstra a experiência de jovens negros do sexo masculino. Por exemplo, aos 21 anos, um jovem negro possui 147% mais chances de morrer por homicídio do que um jovem branco com a mesma idade (IPEA, 2016).

Ou seja, as mortes violentas no Brasil são seletivas e os jovens negros são os alvos principais deste fenômeno. Segundo dados do Relatório Final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens (2016), um jovem negro é assassinado a cada 23 minutos no país, o que representa 63 mortos por dia e 23.100 por ano. Além dos índices gerais, alguns estados têm dados ainda mais alarmantes, por exemplo, em Alagoas, durante o ano de 2014, enquanto o número de assassinatos de brancos por arma de fogo não passou de 60, o homicídio de negros chegou a 1.702 (FLACSO, 2016).

Esses dados estarrecedores demonstram mais do que a discrepância entre a violência que atinge negros e brancos, mas apontam para algo que se demonstra inegável: a existência de um genocídio contra a população negra no Brasil. Ou seja, o extermínio deliberado contra uma determinada comunidade, no caso a juventude negra, é uma realidade concreta. Fazer parte desse grupo significa estar em risco iminente. E o Relatório Final da CPI coaduna com a tese da existência de um genocídio em curso no país.

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Acervo: Odara

As vidas ceifadas por esse genocídio são de responsabilidade do Estado brasileiro, seja por sua ação direta ou pela sua omissão. O resultado disso se observa na atuação da polícia, das milícias, esquadrões da morte, crime organizado, etc. Muitas vezes aqueles que deveriam proteger se comportam como algozes: a polícia no Brasil é a que mais mata em todo o mundo. Em contrapartida, o índice de assassinato dos policiais brasileiros também é altíssimo, estão entre os que mais morrem. Segundo, um levantamento da BBC Brasil, para aproximadamente cada quatro cidadãos mortos pela polícia no Brasil em 2013, um policial foi assassinado.

Mas, as pesquisas rebatem a premissa dos autos de resistência, que alegam supostos confrontos, permitindo aos policiais atirar em legítima defesa, mas que muitas vezes na prática são utilizados para camuflar execuções sumárias ao invés de confrontos: a maioria dos policiais assassinados se encontrava no período de folga (BBC BRASIL, 2014). Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que, entre 2009 e 2013, as polícias brasileiras mataram 11.197 pessoas em situações classificadas como autos de resistência, o que representa seis mortes por dia. A investigação do sociólogo Michel Misse (2011) sobre a utilização desse recurso no Rio de Janeiro revela que entre os inquéritos de autos de resistência, 99,2% foram arquivados ou nunca chegaram à fase de denúncia. Portanto, a definição dos casos como autos de resistência limita a averiguação e consequentemente favorece a impunidade.

Além disso, a impunidade está relacionada com o fato de que não existe seletividade apenas com relação aos alvos dos assassinatos em si, mas também é diferenciada a comoção social frente a esses crimes. Tanto o impacto na opinião pública, como a visibilidade e o discurso da mídia se alteram de acordo com a classificação racial e o status social e econômico das vítimas de homicídio. É como se o assassinato de jovens negros periféricos fosse irrelevante para a sociedade e simbolizasse apenas o reforço das estatísticas. Ou pior, representasse o cumprimento de uma lei oculta que não está presente na Constituição, mas está viva no imaginário social: a autorização de sentença de morte sem julgamento prévio, quando se tratam de corpos negros.  Toda vez que a sociedade e o Estado brasileiro fecham os olhos para esta realidade, naturaliza-se o assassinato de jovens negros e se fortalece a perpetuação das hierarquias e da atrofia do desenvolvimento social do país.

A ideia de que essas vidas são irrelevantes é uma falácia. A cada jovem negro morto a sociedade fica órfã de um grande potencial. Os 23.100 jovens negros assassinados anualmente no Brasil significam uma perda incalculável de talentos que poderiam contribuir para o desenvolvimento do país. Cada uma dessas vidas interrompidas causa um impacto expressivo em toda a comunidade e nos grupos familiares. Mães e esposas, mesmo flageladas, se veem obrigadas a lutar para comprovar a inocência do ente morto, impedir a impunidade e confrontar o esquecimento desses crimes, ainda que sujeitas a sofrer retaliações.

Este sistema genocida precisa ser cessado e o seu impacto social nefasto precisa ser reparado. Desde 2012, as Nações Unidas (ONU) recomendaram o fim da Polícia Militar no Brasil. Recentemente, a Comissão da CPI do Assassinato de Jovens do Senado fez a mesma indicação. Ademais, a comissão sugeriu as seguintes ações de combate e prevenção: a construção de um Plano Nacional de Redução de Homicídios de Jovens; a transparência e a criação de um banco de dados nacional sobre segurança pública e violência; além do fim dos autos de resistência e da unificação das Polícias Militar e Civil.

O FOPIR reitera essas recomendações na área da segurança pública e destaca a sua urgência. Reforçamos que, além de ações diretas neste âmbito, é fundamental que estas iniciativas estejam conectadas com políticas públicas no campo da educação, cultura e trabalho. É preciso garantir novas possibilidades e expectativas destes jovens e assegurar o direito a uma escolarização regular e qualificada em um ambiente escolar saudável. É preciso também assegurar no mercado de trabalho a abertura de posições qualificadas e associadas com a garantia da inserção de jovens negros e negras de maneira digna.  Para o FOPIR, a vida dos jovens negros é tão valiosa como a de qualquer outro grupo e precisa ser preservada. Não haverá democracia efetiva sem o alcance da equidade de gênero e de raça.