Representantes da sociedade civil ficaram indignados diante do descaso do governo
Este ano completou 132 anos da falsa abolição da escravidão e a população negra e quilombola, mais de 54% da população brasileira, ainda vivencia um cenário de total desigualdade e exclusão, principalmente na atual conjuntura escancarada pela Covid-19. Os impactos da pandemia do novo coronavírus nas populações negras e quilombolas foi tema da audiência pública realizada pela Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 (CEXCORVI) da Câmara dos Deputados, na última quarta-feira (26).
O Brasil já ultrapassou a marca das 117 mil mortes e já soma mais de 3,7 milhões de infecções. De acordo com o Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde (NOIS) da PUC-RJ, entre o número de óbitos, negros são 55% dos vitimados, contra 38% dos brancos. A mesma pesquisa aponta que as pessoas que não concluíram o ensino básico apresentam taxas três vezes maiores de letalidade (71%) ao adquirirem a doença do que pacientes com nível superior (22,5%). Os números revelados demonstram que o racismo estrutural define que a população negra será a mais afetada porque vive uma realidade histórica de negação de direitos e de humanidade.
Na audiência, ativistas dos movimentos negros alertaram que em função do descaso do governo federal sobre os dados, agrava-se mais rápido a situação destas pessoas. “Nós nunca tivemos direito nessa nação. Nós vivemos numa nação totalmente hostil a população negra. Os dados coletados a nível nacional de raça\cor sobre a Covid estão maquiados, não refletem a realidade, os dados reais do que estamos vivendo, de como estamos morrendo”, afirmou Valdecir Nascimento, coordenadora executiva do Fórum Permanente pela Igualdade Racial (FOPIR).
A especialista em saúde, Marcia Alves, pesquisadora associada e membro do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO), diz que o Brasil ocupa uma posição vexatória em nível global na pandemia, sobretudo porque o racismo institucional influencia que as pessoas negras morram mais. “A população negra recorre majoritariamente ao Sistema Único de Saúde e é quem mais procura os serviços de complexidade, mas paradoxalmente elas não são tratadas de maneira igual a população branca e isso explica o número enorme de óbitos”.
A especialista em orçamento público, Carmela Zigoni, assessora do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), afirma que entre 2014 e 2019 houve um corte de 80% do Programa 2034 de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial. “No Plano Plurianual (PPA – 2020 a 2023) do governo Bolsonaro houve a extinção desse programa de enfrentamento ao racismo e de promoção da igualdade racial. Da mesma forma as comunidades quilombolas foram excluídas do plano. “Não há nenhuma menção aos quilombolas, ao racismo e a igualdade racial”, informou a especialista. Os dados apresentados por Zigoni foram divulgados pelo relatório O Brasil com baixa imunidade – Balanço do Orçamento Geral da União 2019, desenvolvido pelo INESC.
A oficial de Direitos Humanos do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU), Angela Pires Terto, em sua fala chamou atenção que o coronavírus é um grande problema global que tem afetado de maneira desproporcional os grupos raciais e étnicos já marginalizados, além de expor as desigualdades estruturais em várias áreas, exacerbado o racismo e a discriminação racial.
“A ONU recentemente publicou um documento com recomendações e boas práticas para enfrentar e minimizar as discriminações raciais no contexto da pandemia, uma vez que percebeu um aprofundamento da marginalização e desigualdade para afrodescendente e de outros grupos raciais, principalmente, no que se refere ao acesso à saúde, a moradia adequada, trabalho e educação. A situação socioeconômica da maioria da população afrodescendente, não apenas do Brasil mas nos vários países do mundo, afeta diretamente seu acesso a moradia digna, saneamento básico e a água. Esses são serviços essenciais para que as pessoas possam seguir as medidas sanitárias para prevenção e controle da pandemia”, declarou Terto.
A oficial de direitos humanos da ONU também enfatizou que a situação dos presídios em relação à super lotação e precariedade do acesso a saúde é desafiadora no contexto da pandemia e lembrou a importância da produção de dados agregados, da execução de políticas públicas especificas e da garantia do orçamento público que efetive sua implementação. “A ONU faz um chamado para que os Estados membros que incorporem os direitos humanos na resposta a Covid-19. Não há como dissociar a resposta à pandemia dos desafios dos direitos humanos já existentes nos diversos tratados internacionais”, defendeu.
A apresentação da coordenadora-geral de Políticas Étnico-Raciais do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Luciana Valéria Pinheiro Gonçalves, foi sobre as políticas de governo e os representantes da sociedade civil demonstraram indignação com ausência de ações apresentadas pelo governo para enfrentamento da pandemia.
A deputada federal Áurea Carolina (PSOL\MG) em sua intervenção lembrou o papel do Congresso na fiscalização das ações do executivo brasileiro. “Eu fiquei bastante admirada de ouvir a apresentação do governo federal que lamentavelmente não conseguiu demonstrar como poderia reverter essa situação e garantir o acesso igualitário aos serviços e uma proteção dos direitos dessas populações. Ao invés disso, a representante trouxe dados de baixíssima execução orçamentária, e entrega de cestas básicas para um numero irrisório de famílias quilombolas do Brasil. Estes dados nos envergonham profundamente. É importante fazer uma cobrança do cumprimento constitucional, da obrigação do Estado brasileiro”, relatou a deputada.
Já a quilombola e ativista da Coordenação Nacional de Articulação e Mobilização das Comunidades Negras Rurais (CONAQ), Selma Dealdina, enfatizou que a ação do governo federal com a doação de cestas básicas está longe de ser eficaz porque não consegue atingir nem os territórios quilombolas de uma região do país, além de não assegurar uma regularidade levando em consideração a situação de fome e pobreza nos quilombos.
“A gente precisa ver onde o governo esta investindo em política pública, tendo em vista que é um governo que esta sem ministro da saúde. Saúde não é prioridade, se fosse já teríamos um ministro e o governo não apagaria os dados raça\cor. É ter uma relação transparente. Estamos falando de um governo genocida, fascista e racista que decretou a morte de uma parcela da população. É um governo que diz que não vai titular terra quilombola e reduziu o orçamento à quase zero”, destacou Dealdina, que solicitou ao presidente da CEXCORVI que disponibilizasse a apresentação da representação do governo federal na audiência.
“A apresentação que foi feita aqui de 40 mil cestas básicas é patético. É revoltante que órgãos do governo federal responsáveis pelo socorro de um país de dimensões continentais possa destacar como algo exitoso a entrega de 40 mil cestas básicas. Isso comprova mais uma vez que a sociedade brasileira, sobretudo, os mais pobres, dependem só de si”, reforçou Douglas Belchior, representante da Coalizão Negra por Direitos.
O deputado Marcelo Freixo (PSOL\RJ), presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Democracia e dos Direitos Humanos também reforçou a critica ao governo Bolsonaro e sua ação ineficiente na crise do coronavírus e reafirmou que quem mais sofreu com as decisões presidenciais na pandemia foram às trabalhadoras domésticas.
“Os mais atingidos eram previsíveis. O presidente em momento algum dialogou com prefeitos e governadores, nem ouviu a Organização Mundial de Saúde. São mais de seis milhões de trabalhadoras domésticas no Brasil e muitas delas foram colocadas em risco, perderam suas vidas e colocaram suas famílias em risco”. Vale ressaltar que quase 70% das trabalhadoras domésticas no Brasil são mulheres negras.
Os participantes da audiência cobraram do Comitê de Operações Emergenciais (COE), ligado ao Ministério da Saúde, ações de enfrentamento à pandemia, voltadas para a população negra.
Foi encaminhado que o Congresso envie um requerimento de informações para saber se em algum momento esse comitê se dedicou ao tema do impacto da Covid-19 sobre a população negra. Também foi sugerido que a população negra e quilombola seja priorizada quando surgir a vacina contra o coronavírus.
Na ocasião, o deputado Alexandre Padilha (PT\SP) cobrou a aprovação, na Câmara, do projeto de lei de sua autoria para obrigar o SUS e instituições privadas de assistência à saúde a incluírem um marcador étnico-racial nos registros dos pacientes com Covid-19.
Assista audiência completa AQUI