Desembargador também inocentou a juíza que pediu a prisão da advogada Valéria dos Santos durante audiência. “As instituições são réplicas de violências históricas”, diz pesquisadora
São Paulo – A conclusão da Comissão Judiciária dos Juizados Especiais (Cojes), de que a advogada Valéria Lucia dos Santos, detida durante audiência judicial em Duque de Caxias (RJ), “se jogou no chão” e foi algemada para sua própria segurança, revela a “Justiça colonial” existente no Brasil, segundo Dina Alves, advogada e pesquisadora em segurança pública.
“É uma lamentável decisão, um diagnóstico da insidiosa persistência do racismo estrutural na administração da justiça no Brasil”, afirma. Para ela, a conclusão do desembargador Joaquim Domingos de Almeida Neto, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), é um retrato de uma realidade mais ampla, com sentenças semelhantes que criminalizam e punem a própria vítima.
O desembargador também inocentou a juíza leiga Ethel Tavares de Vasconcelos de ter praticado qualquer abuso de autoridade ao pedir a prisão de Valéria dos Santos durante a audiência.
“Revela (a conclusão) como o Estado penal interfere no corpo das mulheres negras. Algemar uma mulher negra, trabalhadora, no exercício legal da profissão, com tamanha violência como foi, revela como temos uma justiça colonial no Brasil, como as instituições são réplicas de violências históricas”, afirma Dina Alves, atuante no Comitê contra o Genocídio da População Negra e no Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas.
Ao relativizar a violência sofrida pela advogada Valéria Lucia dos Santos, a pesquisadora em segurança pública acredita que a violência causada pelo sistema de justiça contra a população negra tende a piorar após a conclusão da Comissão Judiciária.
“Acredito que o caso da Marielle (Franco, vereadora carioca assassinada em março), essa algema na doutora Valéria, essa violência perpetrada pelas instituições de justiça tende a piorar, porque a gente vive num cenário perigoso, com a retroalimentação do sistema capitalista e do racismo no Brasil, porque o capitalismo necessita do racismo para sobreviver. A gente vive numa sociedade organizada por hierarquias de raça, classe, gênero e sexualidade. Vivemos num sistema de dominação racial”, enfatiza Dina Alves, para quem o racismo no Brasil mostra suas múltiplas faces diariamente.
Estranheza
Em nota oficial divulgada nesta terça-feira (25), o presidente da Comissão de Prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), Luciano Bandeira, manifestou “estranheza quanto à conclusão do Procedimento Administrativo em trâmite na Comissão Judiciária dos Juizados Especiais (Cojes)”, segundo a qual não houve desvio de função ou abuso de autoridade no caso da advogada algemada no exercício da profissão.
“Causa-nos espécie e estupefação o fato de o tribunal não ter percebido qualquer tipo de ilicitude na inaceitável e reprovável decisão de algemar uma advogada no exercício de sua profissão. Continuaremos a tomar todas as medidas cabíveis contra essa agressão”, diz outro trecho.
Leia a íntegra da nota:
Por meio de sua Comissão de Prerrogativas, a Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Estado do Rio de Janeiro, vem a público manifestar sua estranheza quanto à conclusão do Procedimento Administrativo nº 2018.0172890, em trâmite na Comissão Judiciária dos Juizados Especiais (Cojes), segundo o qual não teria havido desvio de função ou abuso de autoridade no caso da advogada Valeria Lucia dos Santos. Após ter seu acesso à contestação negado, vale lembrar, a colega terminou por ser algemada no chão da sala de audiência, no Fórum da Comarca de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, no dia 10 de setembro.
A Ordem tomou conhecimento da lamentável decisão da Cojes apenas por intermédio dos meios de comunicação que noticiaram o fato, vez que não integrou o procedimento, nem pôde participar da oitiva da juíza leiga ou das testemunhas arroladas.
Causa-nos espécie e estupefação o fato de o tribunal não ter percebido qualquer tipo de ilicitude na inaceitável e reprovável decisão de algemar uma advogada no exercício de sua profissão. Continuaremos a tomar todas as medidas cabíveis contra essa agressão.
O Procedimento Ético Disciplinar no intuito de apurar, adequadamente, a conduta da juíza leiga está em curso em nosso Tribunal de Ética e Disciplina, que, ao contrário do TJ, ouvirá todas as partes, respeitando o direito à ampla defesa, ao contraditório e a todos os princípios legais pertinentes. Também tomaremos as providências devidas tanto na Corregedoria do Tribunal de Justiça como no Conselho Nacional de Justiça, caso se faça necessário.