CARTA DAS MULHERES NEGRAS SOBRE O COVID-19 À SOCIEDADE BRASILEIRA

 

Deixei o leito às 4 horas para escrever. Abri a porta e contemplei o céu estrelado. Quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. Tive sorte! As mulheres não estavam na torneira. Enchi minha lata e zarpei. (…)

Carolina Maria de Jesus

20 de Julho de 1955 –

Quarto de Despejo

 

Nós, mulheres negras brasileiras, apavoradas com o impacto que o Covid-19 (coronavírus) tem produzido na Europa e na China, provocamos a sociedade brasileira, governos e gestores públicos a pensar em implantar assistência emergencial para as pessoas mais vulneráveis da sociedade brasileira dos quais, nós, mulheres negras, urbanas, quilombolas, das águas, das florestas, marisqueiras, pescadoras, trabalhadoras domésticas, profissionais do sexo, portadoras de deficiência e LBTs, somos as mais afetadas. Este documento é uma denúncia e um apelo para criação e efetivação de políticas focalizadas diante da atual conjuntura.

 Por isso, fazemos um alerta a partir deste documento e relembramos alguns desastres que acometeram o país nas últimas três décadas e que resistimos bravamente, porém com muitas sequelas: o césio – 137 (maior acidente radiológico do mundo); o desastre da dengue e da chikungunya – que dos cinco tipos existentes, o Brasil já apresentou quatro, atingindo majoritariamente as populações pobres e negras; o Zika Vírus no Brasil, ainda em curso, que impactou desproporcionalmente as mulheres e as meninas negras, principalmente, na região Nordeste e expôs antigos e graves problemas de direitos humanos, incluindo o acesso inadequado à água e ao saneamento básico, as desigualdades raciais e socioeconômicas no acesso à saúde e as restrições aos direitos sexuais e reprodutivos.

Vale ressaltar que a epidemia já era notada muito antes do governo confirmar a transmissão local do Zika Vírus. Destacando que o alarme nacional e internacional trouxeram atenção aos desafios de saúde pública e direitos humanos no Brasil, ainda assim, a maioria das gestantes que foram infectadas com o Zika Vírus ainda vivem uma realidade de extrema dificuldade com seus filho (as) nascido (as) com microcefalia.

 Os casos mencionados nos servem de referência para denunciar a proporção e o impacto do Covid-19 na população negra, considerado ainda sem alto poder de contágio.

Os meios de comunicação em massa insistem em apresentar orientações para o isolamento e quarentena, completamente dissociadas da realidade vivida pela população negra, de periferias e favelas urbanas e rurais deste país. Ignoram completamente que é na convivência diária, solidariedade e no apoio comunitário que, as vítimas da omissão do poder público, se sustentam. O apoio comunitário existe para essas pessoas como uma estratégia de enfrentamento às condições de pobreza, de combate aos efeitos do racismo e às desigualdades raciais.

Cientes dessa realidade, sabemos que não será possível o isolamento dos infectados em milhares de famílias que vivem amontoadas dentro de espaços com tamanho inferior a 40m², com uma média de cinco a seis residentes.

Em 2020, no Brasil, muitas mulheres negras ainda vivem como Carolina Maria de Jesus, a escritora do “Quarto do Despejo” – obra literária brasileira mais vendida no mundo. Carolina, nascida em 1914, morava com seus 3 filhos num barraco na favela do Canindé, em São Paulo, trabalhava como catadora e vendedora de materiais recicláveis e registrou neste livro as vivências da maior parte da população negra brasileira. Continuamos vivendo em quartos de despejo – favelas e periferias do Brasil.

O que diria Carolina sobre a vida na favela em tempos de pandemia? Restrita da possibilidade de trabalhar com o que muitas vezes nos resta de trabalho? Os trabalhos informais, muitas vezes insalubres e arriscados.

Perguntamos à sociedade brasileira: quarenta para quem? As famílias brancas continuam obrigando as trabalhadoras domésticas a permanecer nos locais de trabalho. Não conseguem cuidar das suas casas e dos seus filhos.

A maioria da população vive nas piores condições; vivenciam os mais altos índices de violências; ocupam os postos de trabalho informais de maior vulnerabilidade; mais de 90% das trabalhadoras domésticas do Brasil são negras e elas não estão sendo liberadas. Ou a liberação é sem remuneração; as empresas de call center no Brasil também não se posicionaram, portanto, não liberaram seus funcionários; Os supermercados e postos de gasolina no Brasil ainda não estão em regime de escalonamento. Há muitas pessoas trabalhando sem proteção.

Portanto, não cessaremos de perguntar a sociedade brasileira, quarenta para quem? Para enfrentar tamanho desastre anunciado, e evitar em paralelo a violação de outros direitos humanos básicos, exigimos que imediatamente sejam tomadas as seguintes providências de emergência focada nas pessoas mais vulneráveis, durante a quarentena:

  • Acompanhamento sistemático da ação policial nos bairros periféricos e favelas;
  • Monitoramento dos casos de violência doméstica, sexual e feminicídio, visto que a violência poderá ampliar nas residências;
  • Acompanhamento e proteção redobradas as defensoras de direitos humanos que já vivem cotidianamente sob risco;
  • Acolhimento imediato da população em condição de rua, dignas de humanidade;
  • Divulgação pelos meios de comunicação dos laboratórios públicos e privados credenciados para realizar o teste de contaminação da doença;
  • Garantia da realização de testes para todas as pessoas que apresentem os sintomas compatíveis;
  • Mais atenção do poder público para os quadros confirmados oferecendo às vítimas melhores condições de assistência hospitalar e acesso aos medicamentos;
  • Paralisação de todas as atividades laborais na indústria, comércio, prestadoras de serviços terceirizados – merendeiras, serviços gerais, (entre outr@s), do trabalho informal (camelôs, autônom@s, ambulantes); desempregad@s; com acesso a renda mínima direta ofertada pelo Estado;
  • Manter a suspensão das aulas em toda a rede ensino com propostas didáticas efetivas para as perdas escolares e alternativas alimentares para as família dos\das alunos (as), com distribuição de cesta básica;
  • Mapeamento das residências com maior vulnerabilidade;
  • Deslocamento de famílias em situação de rua para locais seguros;
  • Liberação emergencial das trabalhadoras domésticas com sistema de fiscalização e salário garantido;
  • Aporte de recursos para dinamização do Sistema Único de Saúde (SUS);
  • Convocação imediata de profissionais da saúde, corpo de bombeiros locais e internacionais para contribuir na contenção da pandemia;
  • Investir em formas de identificação, criminalização e combate às fake news e medidas educativas à população em relação ao acesso à informação;
  • Manter a população diariamente informada sobre o processo de contenção ou expansão do covid-19;
  • Orientações sobre formas de proteção que levem em conta linguagem, classe, territórios e identidades para fortalecer a imunidade;

Só conseguiremos vencer este desafio singular se as medidas de prevenção e controle da pandemia forem inclusivas e verdadeiramente para todos e todas.

Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB)