Quase metade dos feminicídios são cometidos por armas de fogo, revela estudo

Major Cláudia Moraes / Foto: Divulgação – Reprodução – ÉPOCA

Maioria dos casos no estado do Rio de Janeiro ocorre dentro de casa e é cometida por companheiros e ex-companheiros de vítimas

O que há em comum entre os assassinatos de Tamires Blanco, de 30 anos, Marcelle Rodrigues, de 27 anos, Simone Oliveira, de 40 anos, e Iolanda da Conceição, de 42 anos, é que todas foram mortas por ex-companheiros no ambiente doméstico, vítimas de feminicídio. Em 2017, foram registrados, em média, cinco crimes de feminicídio por mês no estado do Rio de Janeiro. Em 2019, foram quatro casos em apenas cinco dias.

De acordo com a Subcoordenadora de Comunicação Social da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ) e uma das organizadoras do Dossiê Mulher, major Claudia Moraes, 75% das tentativas de feminicídio e 57% das mortes são cometidas por companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Em relação ao local, 52% das mortes e 65% das tentativas ocorrem dentro de casa. Além disso, 47,2% dos homicídios cometidos foram por armas de fogo e 9,7% por arma branca, isto é, facas e facões.

“Um número não deve servir só para chocar, mas para que possamos conseguir implementar políticas públicas e mobilizar a sociedade a partir de evidências. E isso é uma evidência de que as mulheres sofrem muita violência”, relata Moraes. Em entrevista a ÉPOCA, a major explicou as principais motivações do feminicídio, as formas de prevenção e as políticas públicas existentes.

ÉPOCA: O que é feminicídio?

Major Cláudia: Nem toda morte de mulher é um feminicídio. Hoje já temos 15 países da América Latina que tipificam o feminicídio, sendo que o Brasil o tipificou recentemente. O que caracteriza o feminicídio é a morte de uma mulher pelo fato de ser mulher. Por vezes, esse tipo de violência fica obscurecido no total dos outros tipos. Temos uma média de mais de 300 mulheres mortas por ano [no estado do Rio de Janeiro], mas quantas morreram por ser mulher? O crime de feminicídio vem para que possamos enxergar.Muitas mulheres passam anos sendo agredidas, sofrendo violência física e psicológica, sendo desmerecidas e sofrendo várias outras formas de violência que, muitas vezes, terminam com a morte. E isso independe de classe social porque é uma questão de violência de gênero. Essa palavra precisa ser bem entendida. É o gênero feminino, o menosprezo a essa condição.

Quais são os tipos de feminicídio?

Temos dois tipos de feminicídio: o íntimo e o não íntimo. No íntimo, a mulher tem um namorado, companheiro, ex-companheiro ou marido que acaba cometendo o crime. Esse tipo é mais fácil e rápido de identificar. Isso porque geralmente temos testemunhas, histórico e conseguimos chegar mais facilmente à autoria. Já no feminicídio não íntimo, são homens que, em geral, têm completo desprezo pelas mulheres, são misóginos mesmo, criminosos em série que atacam mulheres por determinadas características. Não é uma pessoa conhecida. Geralmente, isso está associado a crimes sexuais também, em que o estuprador mata a mulher.

Qual o tipo mais comum?

O tipo mais comum é o íntimo. Tem um dado da ONU de 2017 que diz que, em média, 70 mil mulheres foram mortas no mundo. Dessas, 50 mil foram mortas por pessoas conhecidas e 30 mil foram mortas por companheiros ou ex-companheiros. Isso mostra que o lugar mais inseguro para as mulheres é dentro de casa, ao contrário do que pregam, que a rua é para os meninos e a casa para as meninas. Os meninos morrem na rua e as meninas morrem em casa. Temos de falar sobre isso. Não adianta ocultar e dizer que não existe violência de gênero porque ela não vai desaparecer. Ela sempre existiu.

O que é o Dossiê Mulher?

O Dossiê Mulher é uma obra do Instituto de Segurança Pública que existe desde 2005. Ele é anterior à Lei Maria da Penha. Está na 13ª edição e é um instrumento muito importante, tanto para o gestor de políticas públicas, para que ele conheça e saiba onde deve aplicar recursos, quanto para a sociedade civil acompanhar. Um número não deve servir só para chocar, mas para que possamos conseguir implementar políticas públicas e mobilizar a sociedade a partir de evidências. E isso é uma evidência de que as mulheres sofrem muita violência. Existe o que chamamos de ciclo da violência. A mulher apanha e volta e fica nesse ciclo. Não nos cabe julgar porque existem várias situações que prendem essa mulher a esse relacionamento, como a dependência financeira, afetiva, psicológica e até mesmo a crença de que aquilo não vai voltar a acontecer. Mas a experiência mostra que, se aconteceu uma vez, vai se repetir.

Desde quando esses dados estão disponíveis?

Passamos a ter essa informação no banco de dados da Polícia Civil como uma variável a partir de outubro. Só temos números fechados aqui no Rio de Janeiro, de um ano inteiro, a partir de 2017. Foram 68 feminicídios em 2017 como um todo. Mas isso em um primeiro momento.

O número de homicídios está aumentando?

Não podemos dizer que essa violência diminuiu porque, quando olhamos os dados como os de homicídio, percebemos que eles aumentaram. De 2016 para 2017, tivemos um aumento de 12% nas tentativas de homicídios de mulheres. Já nos homicídios, houve um aumento de 360 para 396 de 2015 para 2016 e passou para 381 de 2016 para 2017. Uma diferença pequena em termos de números. Percentualmente, a redução foi baixa. Mas quando a mulher não registra, não temos o registro da ameaça. Nos dados de homicídio, a possibilidade de não registrar uma morte é baixa, a não ser que não se encontre o corpo. Já quando falamos de lesão corporal e ameaça, temos fatores que podem fazer com que a pessoa registre ou não. Em relação a lesão corporal e ameaça, esse indicador fica sempre muito difícil.

Por que houve aumento?

Estamos no início de janeiro e já temos quatro casos de feminicídio registrados. Mas só vamos conseguir avaliar melhor quando tivermos dados mais consolidados, a partir da comparação de dados fechados entre anos e meses. Em alguns anos, tivemos uma redução significativa nos homicídios totais da população, mas em relação às mulheres, tivemos um aumento. Isso porque não tínhamos nenhuma ação ou política pública voltada para essa violência. Estávamos trabalhando com homicídio no geral. Hoje, quando começamos a ter dados de feminicídio e a entender as dinâmicas, conseguimos trabalhar preventivamente com isso. Se começamos o ano com quatro casos, é para ficarmos mais atentos, mas isso pode ser também uma maior aplicação, conhecimento e visibilidade da lei. Por isso, é importante que o crime tenha nome, feminicídio. Quando você identifica o nome e percebe que ela pode ser prevenida, descobre que há outras formas de atuar nessa prevenção. É importante falar sobre isso e é importante que todos se envolvam.

Como as pessoas podem se envolver?

É muito batida essa ideia de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Toda a luta das mulheres foi para colocar essa violência, que era do mundo privado, como algo da esfera pública. Uma família saudável não tem violência. O feminicídio não se coíbe ou enfrenta somente com justiça ou polícia. Muitas vezes, a polícia vai chegar depois. Quando a mulher for procurar a delegacia, já terá acontecido. Existem várias formas de as pessoas “meterem a colher” sem se comprometer. Qualquer pessoa pode ligar para o 190. Entre o primeiro e o segundo maior motivo de acionamento da polícia no Rio de Janeiro e também em outros estados da federação está a violência contra a mulher. A determinação da polícia é para priorizar esses casos. No ano passado, nos finais de semana em algumas áreas, chegamos a ter uma média de 500 acionamentos. Se quisermos fazer política pública e atuar, sabemos qual é o perfil da vítima, do agressor, faixa etária, dia da semana. É muito importante que a Delegacia da Mulher funcione 24 horas por dia. A maior parte da violência acontece à noite.

Como denunciar?

No Rio de Janeiro, é possível registrar uma violência em qualquer delegacia do estado. Temos 14 DEAMs e 19 núcleos de atendimento da polícia civil em delegacias distritais. São núcleos com uma policial civil, que vai fazer uma escuta diferenciada. Essa mulher não precisa de deslocar centenas de quilômetros. Ela pode ir na delegacia mais próxima e fazer o registro.

Como funciona o Protocolo Violeta?

Aqui no Rio, temos o Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher e de Vítimas de Violência de Gênero (Nudem) e temos o Protocolo Violeta. Pela Lei Maria da Penha, uma vez solicitada, a medida protetiva tem até 48 horas para ser deferida pela autoridade judiciária. No centro e em alguns lugares da baixada, temos o Protocolo Violeta, idealizado pela Doutora Adriana Ramos de Melo, juíza do Primeiro Juizado de Violência Contra a Mulher. Quando a mulher faz o registro, imediatamente ela recebe um selinho violeta e é encaminhada direto para o Nudem, ouvida pelo defensor público e, em até quatro horas, ela já tem sua medida protetiva deferida. E, uma vez ultrapassado o limite da medida, o agressor vai ser preso. A Lei Maria da Penha é muito mais educativa do que punitiva. Mas se tiver de prender esse homem para proteger a mulher, não há o que discutir. A prioridade é dela. Esse agressor precisa ser responsabilizado.

Como funcionam as patrulhas de vigilância?

As Patrulhas Maria da Penha atuam especificamente no acompanhamento de mulheres com medida protetiva deferida. Nos lugares onde essas patrulhas funcionam, a reincidência é baixíssima e algumas tendem até a zero. Isso porque o agressor sabe que essa mulher não está sozinha. No Rio, temos o Guardiões da Vida, um programa de policiais que identificam esses casos e atuam de forma integrada com juízes e delegacias, com o centro de referência ou órgão da prefeitura que atue no atendimento dessa mulher e com a Guarda Municipal. Esses grupos também trabalham com grupos reflexivos de homens para que eles não reincidam. A resposta é trabalhar com prevenção e educar. E existem várias formas de violência além da física. Hoje temos também o ambiente da internet e a violência sexual, que é uma das mais notificadas. Sete a cada dez mulheres vão passar, um dia, por algum tipo de violência psicológica, moral ou sexual.

Como implementar políticas públicas?

Não resolvemos violência contra a mulher só com polícia ou justiça, mas com políticas públicas. Existem organismos e unidades especializadas, como os Centros de Referência de Atendimento à Mulher, a nível municipal e estadual. Aqui nós temos o Conselho Estadual de Direito da Mulher, o Cedim. Sabemos que a maior concentração é aqui na região metropolitana, mas quando você olha para o mapa e não vê um número expressivo de lesões corporais e ameaças em outros municípios mais afastados, não quer dizer que a mulher não sofra violência. Na verdade, o que há é dificuldade para que essa violência seja comunicada, quer seja por uma questão cultural, quer seja pela ausência de mecanismos ou de espaços onde essa mulher possa ter escuta.

Quais são as armas mais usadas?

A violência contra a mulher se caracteriza por ser de repetição e tende a ficar mais intensa. Principalmente quando falamos de ambiente doméstico, temos muitas dessas mulheres mortas por armas de fogo e por arma branca. Acesso a arma de fogo é um problema para a violência doméstica, assim como a arma branca. Sempre orientamos as mulheres que vivem em um ciclo de violência a nunca ficar em um ambiente de cozinha com seu agressor porque lá ele tem a oportunidade de ter acesso a instrumentos que possam ferir essa mulher, como facas, entre outros.

Quais são os dados do feminicídio?

47,2% dos homicídios cometidos foram por armas de fogo. 9,7% foram por arma branca (facas e facões). Além destes, houve também casos de asfixia, veneno, material inflamável, pedrada, paulada. 34,9% das armas não puderam ser identificadas. Em 2017, foram registrados cinco feminicídios e 15 tentativas de feminicídio por mês. A cada 5 tentativas, uma é consumada. Fora as mulheres que ficam em coma, desfiguradas, paraplégicas. 75% das tentativas de feminicídio e 57% das mortes são cometidas por companheiros ou ex-companheiros. Em relação ao local, a residência somou 52% dos feminicídios e 65% das tentativas.

Há diferenças nos números entre mulheres brancas e negras?

Em relação à importunação sexual, o maior número de registro era de mulheres brancas. O percentual de negras era pequeno. Isso não quer dizer que a mulher negra não sofra, mas há uma notificação baixa. As mulheres negras são tão assediadas quanto as mulheres brancas, mas a questão é registrar ou não. Mas quando você chega no homicídio, temos 25% de brancas, um percentual não identificado e mais de 60% de pretas e pardas. Os números de feminicídio de mulheres pretas e pardas são praticamente o dobro das mulheres brancas. A taxa de homicídio segundo a cor entre mulheres brancas é 2,9 no Rio de Janeiro para cada grupo de 100 mil habitantes e entre as pardas é 5,4. Já entre as mulheres pretas essa taxa é de 5,7, quase o dobro. E elas não são o dobro na sociedade. Duas a cada três mulheres assassinadas são negras.

Qual o resultado do feminicídio?

Famílias destruídas, crianças órfãs, igual a essa que estava com o filho de 11 meses no peito. Feminicídio não tem classe social, pode acontecer com qualquer pessoa. Basta ser mulher. Naturalizamos o assédio, deixamos para lá. Deixa para lá um empurrão, um beliscão, um soco, um braço quebrado e deixa para lá um corpo. Muitos homens não entendem que não é gracejo, não é legal, não precisa agir de forma ofensiva. Ninguém nunca ganhou uma namorada chamando de psiu na rua. São atitudes machistas. Precisamos começar a falar sobre isso e entender o lugar certo das coisas.

Autora: Larissa Infante

Fonte: Época