Por que não temos mulheres negras carnavalescas?

  • Por Angélica Ferrarez

Abordando um dos possíveis caminhos de resposta

Marquês de Sapucaí, Rio de Janeiro.
Vista aérea do Sambódromo da cidade do Rio de Janeiro, Foto: Diogo Bavarelli

Durante o carnaval mais de uma jornalista me fez essa pergunta para suas matérias e algumas amigas e amigos trouxeram a mesma questão em momentos diferentes, daí decidi escrever esse pequeno texto a fim de responder essa pergunta por um dos caminhos possíveis. Para tanto, é preciso recuar um pouco no tempo para entender quando e como surge a figura do carnavalesco.

As escolas de samba tal como temos hoje é uma instituição cultural popular inventada e organizada por grupos negros das favelas e subúrbios do Rio de Janeiro no final da década de 1920. A figura do carnavalesco surge oficialmente na década de 1970, cinquenta anos depois da organização do samba em quadras de escolas de samba. Em geral, homens brancos, recém formados nas escolas de Belas Artes se dedicaram a pensar a curadoria do carnaval e logo foram absorvidos por algumas escolas que rapidamente se renderam a criatividade deste “forasteiro” ou “outsiders” do carnaval.

Indo um pouco mais atrás, vemos que o ano de 1850 é um marco importante para o carnaval e a modernização da cidade do Rio de Janeiro. Momento dos primeiros clubes carnavalescos formados por uma elite acadêmica, segundo Nelson da Nobrega, estudantes de medicina, comerciantes e funcionários públicos graduados. Aqui data a fundação do Clube X que introduziu na festa o carro de ideias, pois os clubes estavam na busca por inovação e a pessoa que pensava o que viria ser retratado no carro de ideias, este que mais tarde viria a ser o carro alegórico, já era ela o prenúncio da figura do carnavalesco.

Viveiros de castro chama o carnavalesco de mediadores culturais e a comunidade do samba entende essa figura como uma pessoa de “fora” da comunidade negra e do carnaval. Eles são os especialistas, os estudiosos, os intelectuais das sociedades carnavalescas dos idos de 1850 e da turma saída das universidades na década de 1970.

A universidade só se torna mais diversa após a política de ação afirmativa das cotas, (atualmente ameaçada com atual desgoverno que o Brasil vive) e mulheres e homens negros entram em maior número nas universidades pós adoção das cotas e em cursos das chamadas ciências humanas, assumindo a crítica de seu tempo, refletindo desigualdades sociais, entendo os Brasis. Sabemos que essa não é uma explicação única para a defasagem de mulheres negras ocupando lugar de carnavalesca, mas até a ameaçada política de cotas refletir em cursos como Artes e Belas Artes, por exemplo, teremos ainda um longo caminho a traçar.

Da turma de Fernando Pamplona, que é justamente essa primeira leva de carnavalescos profissionais da década de 1970 (lembrando que a única mulher deste grupo é Rosa Magalhães) até dos dias de hoje a história se repete. Atualmente, no cenário do carnaval carioca não temos nenhuma carnavalesca negra e apenas um homem negro, o João Vitor Araújo que é designer gráfico e está à frente da escola Paraíso do Tuiuti. Quando penso que representatividade importa sim, mas atentar em quem detém os meios de produção é um exercício que precisa ser feito!

O papel do carnavalesco é importante também se visto pela perspectiva do encontro, ou seja, é no encontro entre os mediadores culturais considerados “de fora” da historicidade do samba com a comunidade negra do samba que vai permitir, por exemplo, um espaço de criação e criatividade para ambos os grupos. Costumo dizer que se não fosse a entrada de carnavalescos na Portela, Candeia não teria saído e fundado o Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo, o carinhosamente chamado Quilombo do Candeia no bairro de Acari no ano de 1975. O mesmo se deu com a entrada da turma de Pamplona no Salgueiro, este que inclusive ganha ares da “Academia do Samba” com a entrada dos carnavalescos facilitando assim a saída de Nei Lopes, que se junta a Candeia na empreitada de uma nova escola “ao povo em forma de arte”.

Candeia pega pesado ao escrever um dos objetivos do “Quilombo” e diz: “Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando a pura expressão das escolas de samba e as transformam em rentáveis peças folclóricas”.

Candeia trilha os caminhos da “negra essencialização do samba”, entretanto o que mais nos interessa a partir da perspectiva do encontro é justamente a disputa da memória do samba. Pois é na disputa da memória que a comunidade negra se arma de elementos para defender o samba e logo as escolas de samba como “coisa nossa”.

Observar a entrada de mulheres negras cada vez mais nas universidades e em cursos que as habilite a disputar outros lugares no universo do samba e do carnaval também nos interessa, principalmente nos dias em que vivemos onde mulheres tem ocupado cada vez mais espaços nas universidades e uma forte onda feminista protagonizada por mulheres negras está acontecendo e tem refletido em diversos setores sociais, não seria diferente com o carnaval. Então que venha o futuro, porque estamos dando duro no presente!

* Angélica Ferrarez é uma ativista acadêmica, doutoranda em História Política pela UERJ pesquisando mulheres negras no universo do samba desde 2010. Integra o grupo de pesquisa e memória da Redes da Maré e faz parte da secretaria executiva do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial – Fopir