
A PEC (Proposta de Emenda Constitucional) 55, que estabelece um teto global para os gastos públicos pelos próximos 20 anos, é uma medida de austeridade fiscal sem precedentes porque combina um status constitucional, um prazo incomum de duração e uma excepcional rigidez sobre a capacidade do governo de gerir a política fiscal. Cabe, portanto, analisar seus potenciais efeitos à luz de uma abordagem baseada nos direitos humanos protegidos pela Constituição e por instrumentos internacionais, como o direito à educação, saúde, moradia digna, à cultura, direitos da criança, laborais entre tantos outros.
Conforme organismos internacionais de monitoramento dos direitos humanos, como o Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, qualquer medida de austeridade deve atender aos seguintes parâmetros:
- ser temporária, estritamente necessária e proporcional;
- tomar em consideração todas as alternativas possíveis;
- não discriminar grupos vulneráveis;
- ser adotada apenas após um processo de tomada de decisão com a participação genuína de indivíduos e grupos afetados.
A PEC 55 não resiste ao crivo de nenhum desses quatro requisitos. Primeiramente, sob qualquer ótica, vinte anos é um prazo exagerado. Não é improvável admitir que uma crise global como a que tomou os mercados financeiros em 2008 possa vir a ocorrer novamente. Naquela ocasião, o Brasil ganhou reconhecimento internacional pela adoção de políticas anticíclicas bem-sucedidas para estimular a economia. Graças a elas, o país se recuperou rapidamente da crise e viu alguns anos de crescimento inclusivo.
Como o regime fiscal proposto não possui nenhuma cláusula de “escape”, diante de uma grave crise as autoridades públicas brasileiras seriam severamente limitadas em sua capacidade de manter e ampliar a rede de proteção social, o que mostra a desproporcionalidade da PEC.
Quanto ao segundo parâmetro, o governo não fez – ou pelo menos não divulgou publicamente – nenhuma avaliação do impacto que a PEC terá sobre os níveis de pobreza, sobre a desigualdade e os direitos humanos. A população idosa brasileira irá dobrar nos próximos 20 anos, e será necessário um aumento de pelo menos 37% do orçamento da saúde. Como o governo enxerga esse desafio dentro do Novo Regime Fiscal? Não se sabe.
Tampouco foram exauridas as análises sobre o custo-benefício desta medida face a outras reformas, como a tributária, muito menos houve processo participativo para avaliar as opções. Sabe-se que, no Brasil, a arrecadação é predominantemente composta por impostos indiretos e regressivos, enquanto que em países desenvolvidos ela incide mais sobre o patrimônio e a renda.
Sequer há um debate sério sobre a necessidade de abolir regras tributárias que praticamente só o Brasil tem, como a isenção da taxação de lucros e dividendos da pessoa física. Segundo estudo do Programa para o Desenvolvimento das Nações Unidas, apenas a reinstituição da tributação sobre essa classe de rendimentos por uma alíquota linear de 15% traria aos cofres públicos mais de R$ 190 bilhões anuais. O Ministério da Fazenda reconheceu em relatório recente que a alíquota efetiva do imposto de renda, isto é, descontadas isenções e outros privilégios, incidente sobre o estrato mais rico da população (mais de 160 salários mínimos anuais) caiu 0,5% entre 2007 e 2013, enquanto que subiu 1,6% na camada mais pobre (até 20 salários mínimos anuais).
No que diz respeito à distribuição não equitativa dos ônus da PEC 55, a experiência comparada fornece provas claras de que cortar gastos em direitos básicos enquanto que se mantêm privilégios é a receita certa para o aumento da desigualdade. Segundo relatório da ONG Oxfam, entre os principais fatores que explicam o crescimento recente da desigualdade na Europa estão as medidas de austeridade, que cortaram o gasto público, e a regressividade do sistema tributário. Exatamente o cenário que se busca reproduzir por aqui.
O próprio FMI (Fundo Monetário Internacional), ao comparar programas de consolidação fiscal pelo lado do gasto e da arrecadação, concluiu que ajustes do primeiro tipo, como o promovido pela PEC 55, levam a um aumento significativo e persistente da desigualdade, à diminuição da renda salarial e da parcela salarial da renda e ao aumento do desemprego de longa duração – sem nenhum impacto econômico positivo.
O ônus de demonstrar que todas as alternativas menos gravosas foram avaliadas é do governo, e está mais do que claro que ele não se desincumbiu dessa obrigação para com a sociedade brasileira.
Se aprovada, a PEC 55 certamente resultará em uma séria erosão dos direitos sociais como resultado de uma diminuição da despesa real per capita, à medida que a demanda por serviços vai aumentar e as receitas não, prejudicando o progresso de vários direitos sociais, especialmente para os mais vulneráveis que dependem mais da prestação de serviços públicos.
Por fim, por representar uma ameaça direta aos direitos fundamentais e uma ruptura do pacto social firmado na Constituição Federal de 1988, passível de questionamento junto ao Supremo Tribunal Federal, a medida expõe também o Brasil à condenação dos mecanismos internacionais de proteção de direitos humanos.Urge, portanto, suspender imediatamente a tramitação da PEC 55 e submetê-la a uma avaliação independente prévia do seu impacto sobre a capacidade do Brasil de cumprir com suas obrigações constitucionais e internacionais em matéria de direitos humanos.