Cidade conviveu com caso de feminicídio na virada do ano, mas ainda sofre resistência da Casa nas discussões de gênero
Nove mulheres foram vítimas de feminicídio na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, na virada do ano. No entanto, discursos machistas e sexistas continuam a ser defendidos pela base governista na Câmara Municipal local. Na 1ª sessão da nova legislatura (2017-20), nesta quarta-feira (1), o movimento “Nenhuma a Menos” foi à Câmara protestar contra iniciativas que tentam impedir discussões sobre discriminação de gênero (dirigida a mulheres e LGBTTs), nas escolas da cidade. Na avaliação das militantes, o poder público tem responsabilidade pela violência praticada contra mulheres, como os feminicídios (crimes de ódio contra o gênero feminino), seja por restringir o debate ou por não garantir serviços públicos de qualidade para elas.
Nos últimos anos, a Câmara Municipal foi palco de uma série de propostas e discursos (transmitidos pela TV Câmara) que vão na contramão das necessidades apontadas por movimentos populares, pesquisadores e entidades internacionais, como a ONU (Organização das Nações Unidas), para combater a violência de gênero. Entre as propostas aparecem o Plano Municipal de Educação – em vigor – elaborado pelo prefeito reeleito Jonas Donizette (PSB) e aprovado pela Câmara em 2016, que excluiu uma série de metas sobre discriminação de gênero, e o Projeto de Emenda à Lei Orgânica Municipal nº 145/15, de autoria do vereador Campos Filho (DEM).
Esse Projeto visa proibir a deliberação na Câmara Municipal de “qualquer proposição legislativa que tenha por objetivo regulamentar políticas de ensino, currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou orientação sexual”. Foi aprovado em 1ª discussão em junho de 2015, retirado de pauta após uma série de protestos, mas continua em tramitação, portanto pode ser colocado em votação final a qualquer momento.
Mãos sujas de sangue
Por isso, o tema do protesto realizado na 1ª sessão do ano foi: “Quem é contra o debate de gênero na escola tem as mãos sujas de sangue!”. “Ô, ô, ô, Jonas, eu quero ver, feminicídio você reconhecer!” e “Cadê, cadê, cadê a Isamara? As mulheres morrem e essa Câmara não fala!”, entoaram as militantes, enquanto o prefeito fazia seu discurso de abertura, pautado pela crise econômica e as alegadas dificuldades consequentes à gestão municipal. Em seus discursos, nem os governistas (28 dos 33 vereadores) nem o prefeito Jonas Donizette (PSB), reconheceram a ocorrência do feminicídio coletivo, tão pouco deram sinais de abertura ao diálogo com os movimentos que lutam pelos direitos das mulheres.
Entre as raras menções relacionadas ao tema, Jonas destacou a criação, em sua gestão, do “Guarda Amigo da Mulher”, programa de auxílio ao poder judiciário no cumprimento de medidas protetivas às mulheres em situação de violência. Em nota enviada como resposta à reportagem do Brasil de Fato no dia 13 de janeiro, a administração municipal também menciona a qualificação da equipe técnica do Ceamo (Centro de Referência da Mulher), a busca pelo aprimoramento do Sistema de Notificação de Violência em Campinas (Sisnov), que permite a identificação de demandas e formulação de políticas públicas na área, e a implementação de serviços de acolhimento a gestantes e mães em situação de rua.
No texto da nota, o governo municipal também qualifica a morte de nove mulheres na virada do ano como feminicídio. “A violência e a discriminação de gênero são reais e cotidianas no Brasil e, pelo grave episódio de feminicídio que chocou a cidade na virada do ano, sabemos que não é diferente no município de Campinas. (…)”. O reconhecimento pelo poder público do caso como feminicídio é considerado fundamental pelos movimentos de mulheres, na medida em que caracteriza o crime de ódio e suas causas: o machismo, o sexismo e a misoginia. Já quanto às restrições impostas pelo Plano Municipal de Educação, a administração não respondeu.
Na Tribuna
Em seus discursos durante a 1ª sessão do ano, vereadores da base governista reafirmaram suas posturas contra o debate de gênero nas escolas que, segundo eles, teria aceitação da maioria da população, comprovada pela baixa renovação do Legislativo. “Isso foi uma resposta à minoria raivosa, canina, que quer se fazer como se fosse verdade, mas a verdade foi mostrada nas urnas”, disse Campos Filho, referindo-se às militantes presentes. “Minha netinha continua brincando de bonequinha. Menino é menino, menina é menina (…) e ainda fala que é professor? Se for para os meus filhos estudarem com professor assim, eles vão ficar sem aprender a ler, fica analfabeto!”, afirmou o vereador Edison Ribeiro (PSL), dirigindo-se ao plenário.
Além das bancadas de oposição (PT e PSOL), o vereador Marcelo Silva, líder da bancada do PSD, também se colocou a favor do debate de gênero. “Não é possível que uma delegacia da mulher não funcione 24 horas, porque os crimes acontecem na calada da noite!(…) Sou a favor do debate de gênero. Deixo clara a minha posição”, disse ele, que se declarou “independente”. Para Mariana Conti (PSOL), única vereadora dessa legislatura e presidente da Comissão da Mulher da Câmara, reconhecer e falar sobre feminicídio é o primeiro passo para combatê-lo.
“O feminicídio é um assassinato previsível e não evitado, citando o caso de Isamara (assassinada pelo ex-marido junto com mais 8 mulheres da família na virada do ano).(…) Muito me preocupa que o Jonas tenha tido a oportunidade aqui de reconhecer o feminicídio e não o fez! Essa Câmara Municipal deve reconhecer e cobrar do governo municipal o reconhecimento do feminicídio e mais políticas públicas públicas para o combate à violência contra as mulheres”, disse ela, mencionando a Moção de Apelo de sua autoria, relacionada na pauta da sessão. Ela também falou sobre como as mulheres são mais atingidas pelas deficiências de serviços públicos, como saúde, educação e transporte.
Manifesto
O Movimento Nenhuma A Menos entregou aos vereadores um manifesto, cobrando posicionamento favorável ao debate de gênero nas escolas. Em um dos trechos, o documento afirma que “o debate de gênero nas escolas é fundamental para a construção de uma sociedade igualitária e justa, sem machismo, racismo e homofobia. Ou seja, é fundamental para o combate à violência contra a mulher. O feminicídio é uma consequência da falta deste debate. Precisamos de uma educação não sexista para mudar nossa cultura machista. Proibir a discussão de gênero nas escolas municipais é condenar mulheres à morte. Não permitiremos que isso aconteça”.
“O ato de hoje foi para lembrar os senhores vereadores que a gente não vai esquecer. Vamos voltar periodicamente para defender a educação de gênero nas escolas, porque isso ajuda a combater a violência contra as mulheres. Esse feminicídio coletivo foi o auge do descaso, que passa tanto pela Educação quanto pela falta de políticas públicas na cidade e no estado de São Paulo”, explicou a professora Doraci Lopes, que participa da Marcha Mundial de Mulheres, do Núcleo de Mulheres do Partido dos Trabalhadores em Campinas e também foi eleita para a nova composição do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos das Mulheres.
Pilar Guimarães, do Coletiva das Vadias, defende que os dados de violência contra mulheres sejam colocados em pauta na Câmara Municipal. “Porque, caso contrário, eles (vereadores) irão continuar se pautando pelas crenças individuais deles e não por uma realidade concreta, de sangue!”, justifica. “Debater gênero é combater a violência contra a mulher (…), é dizer que, muitas vezes a gente é morta porque não se adequa às normas que a sociedade, a igreja, o estado, as famílias nos impõem. A gente não pode silenciar o debate. Proibição não compõe uma democracia justa pra todo mundo”, explica Pilar.
No dia 5 de janeiro, o Movimento Nenhuma A Menos, organizado por movimentos de mulheres, levou aproximadamente 1,5 mil pessoas às ruas de Campinas no Ato Público “Nenhuma a Menos- o machismo mata”, um grito de indignação diante do feminicídio ocorrido na cidade entre a noite de 31 de dezembro e a madrugada de 1º de janeiro. O protesto na Câmara, durante a 1ª sessão do ano, dá continuidade à essa mobilização, que agora planeja o Ato do 8 de março, Dia Internacional de Luta Pelos Direitos da Mulher.
Dados
Segundo o Mapa da Violência 2015, Campinas ocupa a 1.019ª posição entre 1.627 municípios do País em número de homicídios de mulheres, com uma taxa média de 3,2 homicídios a cada 100 mil mulheres. A taxa média da cidade de São Paulo, por exemplo, é de 2,6 e sua posição é a 1.156ª. A pesquisa foi aplicada em municípios com população de mais de 10 mil mulheres, entre 2009 e 2013, período em que o número de mulheres assassinadas em Campinas passou de 12 para 22 ao ano, enquanto que na capital do estado baixou de 168 para 164.
Para conferir a íntegra do Manifesto do Nenhuma A Menos Campinas, acesse a página do movimento nas redes sociais.
Fonte: Brasil de Fato