Por Carmela Zigoni | Imagem: Eustáquio Neves
A cena é a seguinte: o jovem negro Carter James acorda feliz após passar a noite com a namorada e deixa o apartamento localizado em área nobre de Nova York, com a intenção de ir pra casa. Na rua, um policial branco acerca-se e, em meio a abordagem, o mata por asfixiamento. O jovem acorda novamente na mesma cama, dez, cem vezes, e tenta sem sucesso evitar que o policial o mate todos os dias. A paranoia apresentada no filme Dois Estranhos (2020)1 é uma síntese primorosa do conceito de necropolítica, de Achille Mbembe (2018), tão utilizado na atualidade para descrever os horrores perpetrados pelo Estado, projeto que no Brasil encontrou o seu auge com o atual governo.
Simplificando, se a biopolítica de Michel Foucault (1979) revela o poder do Estado de fazer a gestão das populações por meio dos discursos de verdade (técnico, cientifico, moral, político) e determinar quem deve viver, a necropolítica revela quem são os corpos “matáveis”, em risco permanente e iminente de morte, a saber, os corpos racializados. Neste sentido, quando joga foco no acordar eterno de um jovem negro cujo único destino é ser assassinado pela polícia, a narrativa cinematográfica nos transporta temporariamente para o ponto de vista do sujeito negro, onde medo e ansiedade se confundem com a insistência em seguir vivendo.
Acordar, respirar, viver. Estas simples possibilidades tornam-se privilégios em um cenário de necropolítica. Mas quem financia este projeto? Para responder a esta pergunta, precisamos olhar para o complexo arranjo que combina racismo, modelo econômico e distribuição de riquezas. Por um lado, corporações e empresas influenciam os governos a adotar políticas de fomento a projetos de mineração, infraestrutura e agronegócio; e também de militarização e encarceramento. Tais projetos vêm acompanhados da morte dos indígenas, quilombolas e negros, e também dos biomas. Além disso, estes atores do mercado disputam com o restante da sociedade uma parte importante dos recursos públicos, a saber, o orçamento, composto basicamente pelo pagamento de impostos. Se acompanharmos Mbembe, é na colonização que encontraremos as respostas sobre as estruturas sociais da atualidade, e é assim que se comporta o sistema fiscal brasileiro, de maneira colonialista e, por conseguinte, racista.
Racismo estrutural
A cena é a seguinte: um jovem negro estudante de medicina entra na aula de anatomia e se sente mal, desfalece. Todos os corpos disponíveis para dissecação são negros. Enquanto vivencia a experiencia de ser negro em um espaço de poder branco, Maurício parte em busca da pessoa que habita o cadáver identificado como M-8. É nos diálogos com a mãe enfermeira e nos conhecimentos do Candomblé que encontra os sentidos das contradições e desigualdades atachadas à sua existência, e decide mudar as regras do jogo. O filme M-8: quando a morte socorre a vida (2020), de Jefferson De, apresenta uma provocação nítida: quem faz as regras?
A assinatura da Lei Aurea, abolindo a escravidão, em 13 de maio de 1888, simbolizou a criação de uma nova regra, mas o status de liberto não veio acompanhado de acesso à terra e trabalho. Pelo contrário, o Estado promoveu a ocupação deste espaço pela imigração europeia durante a política de branqueamento da população efetuada no início do Século XX. As leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenário (1875) previam indenizações aos escravocratas, compensações financeiras aos proprietários de pessoas escravizadas que, segundo Piketty (2020)2, se tornaram a origem das dívidas modernas em diversos países colonizados.
Muitas décadas depois, as cotas raciais e políticas de fomento a inserção de pobres em universidade particulares tornaram-se emblemáticas para a mudança estrutural, na medida em que permitiram que a mobilidade social da população negra. No entanto, outras políticas estruturantes de combate às desigualdades não foram implementadas, como a reforma tributária com justiça social. De acordo com pesquisa do Inesc (2014), as mulheres negras pagam proporcionalmente mais impostos que outros grupos sociais no Brasil: elas comprometem 32% de sua renda com impostos indiretos (consumo), enquanto os homens brancos que estão entre os 10% mais ricos gastam 21% da renda em tributos. Paralelamente, o Brasil é um dos países que menos taxa herança e patrimônio no mundo.
As trabalhadoras domésticas, as quais 70% são negras, só tiveram seus direitos trabalhistas equiparados aos demais trabalhadores em 2018, exatos 130 anos após a abolição oficial. Símbolo das relações de subalternidade entre negros e brancos no país, estas trabalhadoras foram as primeiras a serem afetadas pela pandemia da Covid-19. Do primeiro óbito, Cleonice Gonçalves, que contraiu o vírus dos seus empregadores, muitas outras domésticas foram afetadas por decretos que determinaram suas funções como serviço essencial sem com isso agregar novos direitos, como adicionais de insalubridade ou indenizações em caso de invalidez decorrente do novo coronavírus.
No golpe de 2016, apoiadores de Jair Bolsonaro gritaram contra os direitos trabalhistas das domésticas e contra os direitos dos estudantes negros ao sistema de cotas nas universidades. No Brasil daquela época, matava-se em nome do combate ao tráfico de drogas mais de 20 mil jovens negros ao ano; registrava-se aumento de 54% na taxa de feminicídio de mulheres negras, enquanto a de mulheres brancas registrava queda de 9,8%; a população negra ganhava cerca de metade (57,4%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca (IBGE, 2014); territórios quilombolas registravam taxa de 47,8% de insegurança alimentar grave (Consea, 2012); os negros representavam apenas 20% representantes no Congresso Nacional (Inesc, 2014). Entre 2004 e 2015, o orçamento voltado para a população negra e quilombola – para políticas de igualdade racial, regularização fundiária, segurança alimentar, educação superior e mulheres –, representava 0,08% do orçamento total. Entre 2016 e 2019 a redução do orçamento de promoção da igualdade racial foi de 71% (Inesc, 2020).
Na pandemia, o falso dilema entre economia versus vida ecoou uma realidade sinistra: as vidas negras não importam no Brasil. Os negros morrem quatro vezes mais do que brancos em decorrência do novo coronavírus. Na contramão do que diziam economistas e sanitaristas nos primeiros meses da crise de saúde em 2020, o governo não atuou para a promover a proteção social desta população. Por meio de muita pressão, a sociedade conquistou o auxílio emergencial e um orçamento de guerra, que permitiu o aumento de recursos para enfrentamento a Covid-19, mas, como veremos, uma grande parte destes recursos não foi sequer executada.
Brasil Sufocado: Balanço do Orçamento Geral da União 2020
A cena é a seguinte: uma senhora negra discursa na rua, com a máscara no queixo e distância segura da plateia composta de mulheres. Dona Teresa fala sobre encarceramento, e na aula impecável sobre direito penal, revela também a dinâmica do orçamento público no Brasil: “Nenhuma vaga [em presídio] a mais. Quando cria uma vaga, cria mais dez pessoas pra ocupar essa vaga. Aquela vaga que a gente quer para um familiar nosso que está preso hoje, vai servir para as nossas gerações futuras. O dinheiro de criar vaga de cadeia tem que ser gasto na primeira infância, criadas creches, para quando a gente for trabalhar, o nosso filho não ficar jogado por aí ou termos que pagar uma pessoa para cuidar deles”. O vídeo viral de internet expressa os princípios da metodologia Orçamento &Direitos, do Inesc, onde o olhar sobre o orçamento enfoca a promoção ou violação dos direitos efetuada com os recursos públicos.
Uma das evidências da violação de direitos promovida com o orçamento é a escolha de invisibilizar o racismo ao invés de combatê-lo: o governo Bolsonaro excluiu a população negra e quilombola do Plano Plurianual (PPA) 2020-2023. Atualmente, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) ainda existe na estrutura do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), mas a falta de menção a estes públicos no PPA, que também não fala em racismo, implica em falta de planejamento de médio prazo para políticas públicas de igualdade racial, bem como ausência de programas orçamentários destinados ao tema. Em 2019, o Programa Orçamentário 2034: Promoção da Igualdade Racial e Superação do Racismo, teve recursos autorizados no valor de R$ 10,3 milhões – dos quais foram executados R$ 7,1 milhões. A partir de 2020, uma vez extinto do PPA, passou a executar somente restos a pagar de anos anteriores, no valor de R$ 2,4 milhões, sem novos recursos autorizados.
O processo de desmantelamento das políticas públicas para as comunidades quilombolas está em curso desde 2014, mas 2020 foi um ano dramático: para regularização fundiária foram destinados recursos somente para pagamento de indenizações a ocupantes irregulares dos territórios. Até agosto, quatro meses após a publicação do decreto de calamidade, somente 5% dos R$7,3 milhões destinados a compra de cestas básicas para este público havia sido executado e para ações de fomento ao desenvolvimento local de comunidades quilombolas o governo executou apenas R$ 884,5 mil reais. Apenas R$ 2 milhões dos R$ 4 milhões disponíveis para a Fundação Cultural Palmares foram gastos.
Os dados são do relatório do Inesc Um país sufocado – Balanço do Orçamento Geral da União 2020, que também denunciou que o governo deixou de executar R$ 80,7 bilhões do orçamento destinado a conter os efeitos da pandemia. O montante representa 13% dos R$ 604 bilhões do orçamento que deveria ser usado para combater o novo coronavírus. Do recurso não utilizado, R$ 28,9 bilhões de reais seriam para o pagamento do auxílio emergencial. O MMFDH, que contou com R$ 582,5 milhões em 2020, deixou de executar 40% do recurso; para as mulheres, não exectutou 70% do recurso autorizado: dos R$120,4 milhões de reais, gastou apenas 35,4 milhões, em um ano em que a violência doméstica aumentou, principalmente para mulheres negras periféricas.
Falta oxigênio nos hospitais. E também falta terra, saneamento, água e comida. Abundam mortes.
Um orçamento para a população negra
Todos os dias acordamos e voltamos ao Brasil do genocídio, em looping, há exatos 29 meses de governo Bolsonaro. Neste pesadelo cotidiano, muitas pessoas têm questionado como o país consegue viver com essa gestão desastrosa da pandemia sem reagir. Há reações, é preciso ressaltar: o enfrentamento autônomo da pandemia nas favelas, nos quilombos e nas comunidades indígenas é um exemplo de organização nos territórios que, desprovidos do apoio estatal, criaram formas coletivas de proteção. Além disso, ONGs, partidos, sindicatos e movimentos sociais se organizaram para angariar fundos, cestas básicas, máscaras, além de produzir informações para denúncias do descaso governamental.
No entanto, precisamos nos questionar sobre o que nos trouxe até aqui: a banalização da morte nos é característica, justamente por sermos uma sociedade colonialista e racista, que entende como aceitável a morte de determinados corpos. Com Bolsonaro, estas mortes se tornam também desejáveis: o bolsonarismo venceu as eleições sustentado pela violência racial e de gênero, e agora chegamos a 450 mil mortes por Covid-19. Na CPI, começam a aparecer as provas que expõem a escolha do governo pela chamada “imunização de rebanho” e esquemas de corrupção envolvendo a venda de remédios sem eficácia, ou seja, necropolítica deliberada.
Neste sentido, o orçamento público e a justiça fiscal tornam-se agendas fundamentais para desconstrução do racismo estrutural. Isso porque a necropolitica está sendo financiada com os nossos impostos e as nossas riquezas. Na medida em que não podemos opinar sobre as escolhas do governo em relação aos recursos do país, uma vez que a população tem pouco ou nenhum espaço de participação, não conseguimos influenciar decisões sobre o modelo econômico, o sistema tributário, nem tampouco sobre os mercados que admitem a proliferação de agrotóxicos e presídios. Se somos nós que pagamos os impostos que devem ser revertidos em políticas públicas, precisamos, então, disputar o orçamento público.
Para dar um exemplo atual, uma campanha do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos, Defund the Police, propõe o desfinanciamento das polícias, baseando-se na ideia de que a segurança pública como está construída não gera proteção, nem produz redução dos números da criminalidade. Ou seja, gasto público sem eficiência, cujo efeito é produzir mais violência. A campanha vem acompanhada de propostas, como a descriminalização das drogas, a desmilitarização das polícias e alternativas para uma segurança humanizada. Seria possível pensar em algo semelhante, considerando que a segurança pública no Brasil está a serviço da criminalização dos corpos negros? Que os bilhões de dólares movimentados no mercado de drogas ilícitas não fica nas favelas? De acordo com Ciconello (2019), a segurança pública no Rio de Janeiro seria “ineficiente e financeiramente insustentável”. A intervenção federal naquele estado teria custado R$3,1 bilhões, recursos suficientes para financiar metade dos gastos com a saúde.
Análises como o Orçamento Temático da Igualdade Racial (Inesc, 2013-2017)3 nos permitem compreender a alocação de recursos em algumas áreas e verificar se o governo estaria priorizando ou não a superação do racismo no Brasil. Ideias como ações afirmativas orçamentárias, como trouxe André Carneiro Leão (2021), também tem ganhado fôlego a partir dos debates que emergiram na pandemia em sua interface com o racismo. Considerando os negros e negras representam 52% da população, precisamos ir além e reconhecer que todas as políticas públicas impactam sobremaneira essa população. Então, se defendemos uma sociedade justa e igualitária, todas as políticas públicas devem partir da superação do racismo para serem formuladas, e não trazer o tema de maneira transversal, mas no seu cerne: afinal, como explicar a melhora de indicadores para brancos e piora para os negros no momento de maior expansão do estado de bem-estar social no Brasil, senão o racismo institucional? Vejam que aqui novamente a concepção de identitário (transversal – raça e gênero) e estruturante (a política pública em si) aparece na visão consolidada da política pública. Erika Malunguinho, deputada e intelectual negra, percebeu isso há alguns anos, quando passou a ensinar que “raça não é recorte, é fundamento”.
A extrema-direita está muito bem informada sobre isso. Em 2020, na reunião ministerial eternizada por Ricardo Salles por propor “passar a boiada” durante a pandemia, a ministra Damares Alves ressalta (1h11min): “Então presidente nós vamos ter que rever muita coisa na aplicação das nossas políticas públicas no Brasil, os nossos seringueiros são em números maiores do que a gente imagina no Brasil. A questão dos nossos quilombos, que estão crescendo e os meninos estão nascendo nos quilombos e seus valores estão lá. Então tudo vai ter que ver a questão dos valores”. Na mesma reunião o ministro da Educação, Abraham Weintraub, disse que odiava o termo ‘povos indígenas’. É interessante observar que o “trabalho com valores” em territórios potenciais para a exploração predatória de riquezas ambientais revela que a pauta econômica e a pauta moral são complementares. A invasão destes territórios pelos interesses econômicos presume o etnocídio, a morte das culturas. Economia e racialização se entrecruzam, desmistificando enunciados que distanciam a pauta moral e a pauta econômica, ou que reforçam o tal identitarismo, que mais parece um substituto da desacreditada democracia racial. O orçamento público, neste cenário, financia a morte, e não a vida.
A falta de ar tornou-se o principal símbolo e a concretude mais insuportável de nossos tempos: o mata leão que suprimiu a vida de Floyd e Beto, o pulmão na Covid-19, a fumaça do fogo no assentamento Quilombo Campo Grande, o último suspiro dos 29 corpos atingidos pelas balas em Jacarezinho, a falta de ar na crise de ansiedade daqueles poucos que se importam nos territórios brancos. Precisamos reconhecer que o orçamento, hoje, atua para a atualização da supremacia branca fundada há mais de 500 anos atrás nestas terras invadidas. Para que possamos voltar a respirar, precisamos enfrentar o fantasma colonial, pois como já disse o mestre quilombola Antonio Bispo, a oposição à Casa Grande não é a senzala, mas o quilombo.
1 Título original Two Distant Strangers, direção de Travon Free, Martin Desmond Roe, vencedor do Oscar de melhor curta metragem.
2 Capital e Ideologia, Thomas Piketty, 2020. Página 195-234. Sobre a Lei do Vente Livre, página 231.
3 Para conhecer detalhes deste trabalho, ver o Capítulo 2 do Livro: https://www.assecor.org.br/files/1815/9802/7678/Genero_e_Raca_no_Orcamento_Publico_Brasileiro_-_Org._Elaine_de_Melo__Xavier.pdf