Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, em famílias negras, é mais que um verso

 

Foto: Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar (Instituto Odara)

 

“(…) Coloquei meu filho de 14 anos no curso de flauta, aqui perto da comunidade, são três vezes na semana. Tenho que leva-lo pessoalmente todas as vezes, e vou carregando a flauta dele para que a Policia não pense que ele está carregando uma arma e comece a atirar nele, pensando que ele é um “ladrão” (como Eles dizem), por se tratar de um jovem negro. Se forem atirar, que atirem em mim (…)”

Mãe do Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto eu Não Chegar, durante uma Oficina na Periferia de Salvador

 

Por Benilda Brito*

 

Nenhuma Mãe dorme tranquila enquanto seus filhos não chegam da rua. Mas desafio uma Mãe Branca, explicar as razões de suas insônias, como as Mães Negras. Afirmo com toda certeza: Mães Pretas são as que menos dormem. Elas sabem que além da violência urbana, existe a Violência Racial que vem ceifando a vida de muitos jovens negros e negras no Brasil. Essa realidade é constante nas favelas e periferias deste país. Não tem limites geográficos. Estamos falando de territórios onde a impunidade é legitimada e o poder público silencia diante de dados assustadores e crescentes.

Somam-se a esses depoimentos, relatos de que Avós costuram os bolsos de roupas novas dos Netos Negros, para que não sejam colocadas nenhum tipo de droga em seus bolsos que possam criminaliza-los, durante uma “revista de rotina”. Mães Negras que ficam de cima dos telhados das casas, principalmente a noite, acompanhando o trajeto a pé, da escola dos seus filhos até em casa, para que  garantam a sua chegada com segurança e não sejam “confundidos”  com bandidos durante a caminhada. Mães que ensinaram dicas de “segurança” a seus filhos como: melhor roupa para usar sem provocar possibilidades de serem “suspeitas”; obrigatoriedade do porte de documentos de identificação ao saírem (mesmo que seja na padaria da esquina); o “melhor tom da cor da tinta nos cabelos” (não pintar ou deixar dreads, como qualquer jovem gosta de usar, por moda ou afirmação da identidade negra) e, ainda assim, seguindo todo o protocolo, foram brutalmente assassinados. Muitas dessas mães sequer puderam fazer o sepultamento dos corpos de seus filhos e lamentam: “Ensinei meu filho a não correr da Polícia, talvez se ele tivesse corrido….” (sic).

O Bem Viver para nós só faz sentido se for partilhado e garantido para todo mundo. Nosso cuidado é Plural. Era e ainda é assim nos quilombos, nos Terreiros, nas Favelas e Periferias, onde o povo negro domina e escancara o tamanho da desigualdade e violência racial a qual somos submetidos.

Admiro a capacidade criativa do povo negro. Capacidade de garantir acesso a lazer diante de tanta violência, garantir subsistência e identidades diante de inúmeras negações, manter fé diante de tantos medos e ameaças, denunciar violações e propor políticas e alternativas, são características dessas Mulheres Negras.

Forma criativa para sobreviver também foi e é o Samba, instrumento de denúncia da violência nesse país que raptou cabeças pensantes em África. O primeiro samba gravado foi em 1916, por Donga (Pelo Telefone), na Casa de Tia Ciata. Ela, uma Negra Baiana morando no Rio de Janeiro, garantiu (era proibido juntar os negros e negras para tocar percussão) no quintal da sua casa, o encontro de vários compositores. Estratégica e muito sábia, na sala da casa ela jogava búzios, na copa, alguns pretos tocando instrumento de sopro (parcialmente permitido) e no fundo do quintal, compositores faziam a leitura política da conjuntura e produziam brilhantemente composições-denúncias em forma de poesia e musica.  Códigos estratégicos que ainda utilizamos no funk, nos saraus, nos slam, nos raps e no samba.

Inspiradas assim e conhecedora de nossa história, idealizamos o Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar, utilizando o samba de Adoniran Barbosa (1910 – 1982), Trem das Onze, gravado em 1964 em Plena Ditadura Militar.

Não posso ficar nem mais um minuto com você, sinto muito amor mas, não poder ser.

Chamamos atenção aqui para esse casal romântico. Um casal que pode ter várias configurações: dois meninos, duas meninas, um menino e uma menina, não importa!! Estão apaixonad@s. Em um momento de extremo afeto e carinho. A lua cheia brilha alto iluminando o amor que promete desenhar uma história de sonhos, filhos, faculdade, carreiras profissionais e futuro. Porém, o relógio ciumento grita. E sem discrição, avisa que está na hora do último trem.

Moro em Jaçanã, seu eu perder esse trem que saí agora às Onze Horas, só amanhã de manhã.

Não é preciso conhecer São Paulo para saber que Jaçanã fica longe do centro da cidade. Quem define quando os chamados “indesejáveis” habitantes das periferias das grandes cidades devem voltar para casa? Quem define o horário do último Trem que carregam Aqueles que tirariam o sono dos outros dos centros urbanos? Quem merece dormir tranquilo? Quando falo nisso, sempre perpassa em minha cabeça o debate sobre a Necropolítica, conceito desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que em 2003 escreveu um ensaio questionando os limites da soberania quando o Estado escolhe quem deve viver e quem deve morrer. Para Mbembe, quando se nega a humanidade do outro qualquer violência torna-se possível, até a morte. O poder da vida e da morte. Quem deve viver e quem deve morrer e, principalmente, em que condições.

O Covid19 é só mais um exemplo dessa dura realidade. O vírus tem relevado o Brasil. A fotografia não é nada bonita. Um pais racista, sexista, LGBTfóbico e assustadoramente desigual. Adoniram já denunciava esse fato, desde 1964.

E além disso mulher, tem outras coisas, Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar

Filh@s Negr@s que estão nas ruas a noite, por trabalho, estudo ou diversão sabem dessa insônia. Sabem da necessidade de voltar para casa. Lamentavelmente, muit@s não têm conseguido chegar em casa. Não por vontade própria, mas pela violência do racismo institucional, que pesa a mão armada do Estado, na grande maioria das vezes. A “insônia” tem deixado sérias sequelas na vida “saudável” dessas mulheres negras.

Sou Filho único, tenho minha casa pra olhar.

Muitos Jovens Negros assassinados vitimados pelo Genocídio da População Negra não têm passagem pela policia ou envolvimento com tráfico. São estudantes, trabalhadores, músicos, capoeiristas, atletas… E insistimos: mesmo que tivessem, deveriam ter acesso a um julgamento justo e não arbitrário como tem acontecido.

Desde 2015 o Odara – Instituto da Mulher Negra vem desenvolvendo o Projeto Minha Mãe Não Dorme Enquanto Eu Não Chegar em três territórios de Salvador. É com o apoio do Projeto que essas mães têm buscando estratégias de sobrevivência pós extermínio dos seus filhos. Em uma das comunidades que atuamos a opção foi pela profissionalização – aulas semanais de Corte e Costura, Artesanato, seguidas de Rodas de Conversas e debates, mobilizam essas mulheres para partilharem da dor e buscar auxilio coletivo. Em outro grupo do projeto estamos em fase de implantação da Cooperativa Maria Empreendedoras, onde cada uma ensina a outra o que sabe – uma forte troca de saberes locais: Quem faz pão, ensina a que faz trança. Quem trança, ensina a que faz artesanato. Quem faz artesanato, ensina quem faz doce. E assim, estamos agora no projeto da construção de uma Cozinha Comunitária para fortalecer renda e partilhar alimentação saudável, barata e alternativa, como a Salada Natalina de Repolho que aprendemos no último natal. No terceiro Território, a opção foi pela musica. Assim como Adoniram, D. Ivone Lara, Lecy Brandão, Jovelina Perola Negra, essas mulheres criaram um coral. Um coral que canta, encanta e denuncia. Escolhe o repertório, debatem a letra, o contexto, interpretam e cantam. Cantam em apresentações dos movimentos sociais, cantam para Elas e outros grupos de Mães, Cantam para quem chora a dor da perda de seus filh@s, Cantam para ressuscitar esperanças.

Nenhuma dessas Mães acreditam na “justiça”. Sabem que o Estado é conivente com as mortes dos seus. Experimentam cotidianamente a impunidade através dos adiamentos das audiências, morosidade nos processos, sentenças carregadas de racismo por muitos Operadores de Direito.

Em muitos casos, essas Mães Negras, experimentam também a dor da solidão. Os companheiros vão embora depois de responsabiliza-las pelas mortes d@s filh@s, reforçando a cultura patriarcal que estamos inseridas de que é das Mães unicamente, a responsabilidade de criação dos filh@s.

Não iremos silenciar. “Nossos mortos tem voz”, seja pela corporeidade, oralidade, memória, e religiosidade. Vamos continuar exigindo: “Parem de nos Matar”. São muito movimentos de mães articulados pelo Brasil, como as Mães da Baixada (RJ), Mães de Luta (MG), Mães que Choram (SP e MG) Mães do Alto (BH), Mães de Maio (SP, RJ, MG, POA) e em outros tantos cantos do país, nós, Mães Negras, partilhamos dororidades, medos, apreensões, estratégias de sobrevivências e resiliências.

 

Que toda a ancestralidade das mulheres que ficaram na travessia atlântica e das que chegaram na terra Brasil, nos amparem na luta  diária da maternidade.

Nosso Axé é para todas Mães Pretas Que Não Dormem Enquanto seus filhos não chegam… Que possamos ter noites tranquilas, sem medo de tanta violência racial.

 

* Coordenadora do Programa de Direitos Humanos do Odara – Instituto da Mulher Negra.