Por Breno Tardelli, na Carta Capital
No Brasil, terra onde a escravidão é romantizada, tem muitos artistas que vivem tranquilamente como se por nada fossem responsáveis ou com nada se responsabilizassem. Artistas que convivem com cenários coloniais com uma naturalidade espantosa, como ficou nítido recentemente na festa de Donata Meirelles, chefe da revista Vogue, que achou de bom tom remontar o cenário colonial com mulheres negras vestidas de mucamas e brancos brindando suas taças e posando em tronos de candomblé – que para muitos eram tronos de sinhá. Donata é casada com o publicitário Nizan Guanaes, envolvido com a propaganda positiva de agrotóxicos a serviço da bancada ruralista, e ambos recepcionaram a elite política e artística do país, na qual parte que se diz engajada como Caetano Veloso, a família Gil, Regina Casé, entre outros.
A festa foi um escândalo racista e quase que de modo instantâneo as redes foram tomadas pelas cenas perversas de mulheres brancas sentadas cercadas por negras que posavam para a foto. Cenas dantescas que transcenderam as fronteiras do país, mas isso não impediu que a festança continuasse. Tratava-se de um final de semana de festa regada a dinheiro do agrotóxico e, no segundo, dia Donata e Nizan contaram com a estrela Ivete Sangalo para entreter os sinhores e as sinhoras. A cantora, conhecida como a “Rainha do Axé”, foi alvo de críticas por mais uma vez compactuar com situações aviltantes ao povo negro e pobre.
Um pequeno parênteses: um pressuposto lógico para ser Rainha do ponto de vista positivo e simbólico é a realeza, a nobreza, a postura e o compromisso com seu povo e cabe aqui ressaltar nesse texto que Ivete Sangalo falha em todos os pontos.
Explico. Ivete se valeu durante a carreira da música negra. Pessoalmente, e respeito gosto em sentido contrário, pensa sua obra como deturpadora do Axé, dos batuques, um trabalho que confundiu a ginga e a dança com ficar pulando, pulando e pulando. Talento e presença de palco à parte, a indústria cultural que elegeu Ivete e outras como rainhas do Axé – sendo todas brancas, algo digno de nota e reflexão – transformou a música num produto muito distante do sentido original dos povos de matrizes africanas. Tal deturpação é motivo de crítica de vários intelectuais negros e negras que apontam o fato como grande exemplo a apropriação cultural. De algo que surgiu negro à “A cor dessa cidade sou eu”, cantado por uma outra mulher branca, muito foi saqueado pela indústria que elegeu Ivete como uma de suas Rainhas.
É verdade que num cenário industrial, essas artistas eram mera peça de reposição de objetos descartáveis no vocal. Não fossem essas, seriam outras mulheres brancas tão medianas quanto. Entretanto, atualmente, passadas décadas desse sistema de apagamento, Ivete Sangalo e outras se encontram ricas, para não dizer milionárias. Vão continuar ganhando dinheiro por gerações e, como tal, não precisam continuar sendo bonequinhos de ventríloquos de alguma gravadora e emissora. Podem ser cobradas à responsabilidade para resgatar o que se invisibilizou, promover cantoras jovens negras em busca de um acesso na íngreme estrada da música, como também se posicionar politicamente em favor das pautas e do povo sobre o qual pisaram nos ombros para alcançar o sucesso.
Dizer-se da Bahia tem muitos artistas que adoram dizer. O próprio Caetano Veloso, que estava no primeiro dia da festa internacionalmente denunciada como racista fazendo seu papel bobo da corte, é um que faz alusão à magia baiana. Ivete e tantos outros também fazem. Mas o que seria essa magia? Seria a romantização do período colonial? A saudade dos sorrisos forçados das mucamas e o tronco para aquelas desobedientes? Algo para se refletir. Ora, se ser da Bahia é, de fato, ressaltar a herança histórica e cultural forjada pelos povos negros, pelos terreiros, pelas rodas de capoeira, honrá-la seria trabalhar para empoderar a população que atualmente, se encontra em grande parte sob a mira do fuzil, sob as louças da cozinha da Casa Grande, lutando para ingressar em universidades públicas ameaçadas de extinção, entre outras situações. Uma cultura que enriqueceu e muito Ivete Sangalo. Isso me parece óbvio.
Como tudo aquilo que é fabricado nessa sociedade injusta, no entanto, Ivete Sangalo mostra-se vazia politicamente, como também se presta a papéis de boba da corte da Casa. Algo que vem desde muito tempo, mas se acentua em tempos absurdos, como, por exemplo, no silêncio sepulcral na ascensão, campanha e eleição de Jair Bolsonaro, rejeitado por mais de 70% das urnas da Bahia, embora tenha sido cobrada para tal postura. Ela pode dizer que é uma mera artista, que não tem obrigação de se posicionar, mas quem sabe se Ray Charles quando se recusou a se apresentar para plateia segregada, sendo banido por décadas e aceitando o preço, pensasse o mesmo? Isso só para ficarmos em um exemplo, já que existem inúmeros de artistas engajados, brasileiros inclusive. Mas os artistas alienados desse país nos tempos atuais pensam que por viverem na colônia podem passar a vida sem se comprometer com nada, apenas sugando e se apropriando do povo que é esquecido no momento da fortuna.
Quando é para se indispor com alguém da Casa Grande, então, aí é que não pode se esperar nada da classe artística, muito bem representada na figura de Ivete Sangalo. Um exemplo mais recente é seu show no dia seguinte à festa nababesca colonial de Donata Meirelles, o que já seria algo de repúdio, uma vez que havia ampla comoção e revolta na base que a elegeu contra o que tinha acontecido. Sem graça, no meio da apresentação, Ivete faz um discurso que não diz que é preciso sentir a dor do próximo, homenageia a querida aniversariante e termina: bora cantar!
Por essas e por outras, bora cantar sim, mas bora ter responsabilidade, algo que há muito falta. Não são mais tempos de assepsia no palco com Renato Aragão. Quem tem mais, pode mais e Criança Esperança parece a todos e todas insuficiente. A demanda política por cobrar responsabilidade e compromisso com os direitos humanos, em especial àquelas artistas que sugam de cultura negra deve ser algo posto na mesa. Quem tem milhões e milhões angariados da cultura e do povo negro de Salvador tem o dever, sim, de se posicionar. Como diz Djamila Ribeiro, você pode não ser a pessoa que aperta o gatilho, mas pode ser aquela que pula o cadáver estendido no chão. Há muito tempo Ivete Sangalo tem pulado corpos.