Por Alberto Heráclito Ferreira
O intelectual negro, isso é, aquela pessoa de cor que dedica a sua produção intelectual à causa política do povo negro no Brasil, é uma figura complicada e recente. É claro que o projeto de artista negro já está em Lima Barreto quando ele se coloca como escritor negro e diz fazer arte negra (isso no início do século 20). Mas, temendo a crítica pejorativa da sua época, que taxava pejorativamente de negrismo toda tentativa dos negros de mostrarem as desigualdades as quais estavam enredados deixou o seu projeto pelo meio. Mas Lima, com certeza, é o patrono da arte negra brasileira. Depois veio a década de 50 e a experiência do teatro negro, os jornais dedicados à temática, a militância corajosa de Abdias Nascimento. Mas essas tentativas foram engolidas pela hegemonia do discurso da democracia racial, que era mantido como expressão potente da nossa brasilidade.
Ser negro era uma forma de racismo, segundo esse discurso. E o Brasil não tolerava racismo. Ainda segundo esse discurso. A ideia de um país mestiço também confundiu muito a identidade negra. Quem era realmente negro no Brasil? A qualquer tentativa de afirmação racial vinha alguém denunciar um certo passado branco da criatura. Negro tinha que ser a pessoa de cor retinta. Preto era preto retinto. Daí os critérios do Ilê Aiê para aceitação dos indivíduos negros dentro da sua agremiação cultural. Daí o lugar secundário que a temática ocupa na obra de Milton Santos. Daí os impasses históricos do Movimento Negro no Brasil. Mas a discussão mudou de ângulo nos anos 2000, com as cotas raciais e com os novos critérios de identificação racial.
Negro é preto ou qualquer mistura que tenha o negro nela, desde que a pessoa mestiçada assim se assuma. Foi assim que eu me assumi abertamente negro. E muitos dos meus amigos também. Jogamos a esterilidade mulata fora e nos assumimos negros. Eu tenho honra do meu pai negro, eu quero ser negro, posto que a minha mestiçagem não me livrou do racismo. O pensamento intelectual negro está crescendo e ganhando graus elevados de elaboração no Brasil nessas duas últimas décadas. Já demonstramos que há racismo no Brasil e que a mestiçagem harmônica é uma invenção ideológica. A partir daí uma galera jovem vem escrevendo e assumindo uma estética preta.
Penso na solidão de intelectuais como Mãe Stela de Oxossi nesses quadros da democracia racial que tanto era vigoroso em seu tempo. As suas posturas intelectuais iam de encontro a qualquer tentativa de tergiversar. Vide, por exemplo, a sua ideia do purismo que os candomblés deveriam guardar com as suas origens africanas, livrando-se das liturgias católicas que as casas de cultos haviam absorvido. Sua voz foi solitária. Creio que a voz de Mãe Aninha também foi solitária. Mas essas duas mulheres são expressões de uma condição indenitária que só hoje conquistamos: a nossa consciência negra.
A nossa intenção de dedicar parte da nossa ação no mundo à causa negra. Aos historiadores e historiadoras negros/as está posta essa nova missão: desenterrar o passado e contá-lo por outras perguntas que o fazemos. Iremos amplificar as nossas vozes e as nossas memórias. Iremos nos constituir enquanto povo negro!
Fonte: Correio 24 Horas