De João Pedro a Fatou: extremos do genocídio da juventude negra

Por *Julio Menezes Silva

Nas primeiras páginas do livro O Genocídio do Negro Brasileiro, clássico do pensamento social brasileiro, o professor Abdias Nascimento apresenta duas definições da palavra “genocídio”, encontradas em dicionários, para fundamentar seu texto. Assumo uma delas para fundamentar o texto a seguir: genocídio – recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições política, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos.

Pois bem.

João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Era morador do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, um dos piores lugares do Brasil para se viver. Em uma operação policial, em plena pandemia da covid-19, teve a casa invadida quando brincava com os primos. Pediu pela vida em vão. Foi baleado no peito. Removido por policiais, passou 16 horas “sumido”, com a família angustiada por seu paradeiro. Quando enfim conseguiram saber onde estava o menino, o desespero: seu corpo estava em uma geladeira dentro do Instituto Médico Legal (IML). Ele é uma das vítimas recentes do homicídio da juventude negra no no Brasil, que tira uma vida a cada 23 minutos.

Ndeye Fatou Ndiaye, 15 anos. Moradora de Laranjeiras, bairro de classe média da zona sul carioca. Um lugar onde a vida para a maioria ainda é digna. Estuda em uns dos colégios mais tradicionais do Rio de Janeiro, o Liceu Franco Brasileiro. É boa aluna em matemática, venceu concurso de poesia com a temática sobre África. Uma menina linda, de beleza única. De alguns colegas de classe recebeu insultos racistas, eugenistas: “dou dois índios por um africano”, “quanto mais preto, mais preju (prejuízo)”, “fede a chorume”.

Ambos os casos ganharam o noticiário ao longo da última semana e mostram aspetos diferentes do genocídio da juventude negra. Genocídio, explica Abdias no livro, não é só a morte física, mas também a morte cultural e subjetiva dos sujeitos. Muita gente indignada se posicionou dentro e fora do ativismo negro. Um dos movimentos mais fortes veio da Associação Cultural Zumbi, que divulgou o vídeo-manifesto bilíngue E se Fosse Seu Filho?, que juntou mulheres distintas para denunciar o genocídio em curso no país.

A deputada Renata Souza, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio, e o deputado federal Marcelo Freixo (ambos do PSOL-RJ), denunciaram à Organização das Nações Unidas e à Organização dos Estados Americanos o assassinato de 14 moradores de favelas em megaoperações policiais no estado do Rio em menos de uma semana. A representação enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, para o alto Comissariado para Direitos Humanos e para a relatoria Especial sobre Execuções Sumárias da ONU pede que sejam tomadas todas as medidas cabíveis para a responsabilização de todos os envolvidos no assassinato do adolescente João Pedro.

Pela família de João Pedro, a indignação partiu de seu pai: “É um sentimento que não desejo para o meu pior inimigo”. “Tiraram o meu sonho, o sonho do meu filho, da minha família. Destruíram a minha família cruelmente”. “A polícia quer forjar uma situação. Não tinha bandido (dentro da casa onde João foi morto). Entraram na casa e tacaram duas granadas. Além dos tiros. Só tinha adolescentes de família”. E se fosse seu filho, leitor (a)? Além do luto de perder um filho, inimaginável, a família ainda tem de confrontar a narrativa sistematicamente mentirosa de uma polícia corrupta, violenta e historicamente assassina, sob o risco de a honra e a memória do jovem João Pedro ficarem manchadas pela eternidade.

No caso de Fatou, acompanhada do pai, ela mesma assumiu a sua defesa e, com brilhantismo, foi pedagógica com os racistas: “Qualquer pessoa negra num ambiente cheio de brancos enfrenta o racismo diariamente. Na época do surto do ebola, um aluno gritou para mim no meio da sala de aula: ‘volta para a África com a sua doença’. Nada aconteceu com ele. A gente olha as mensagens enviadas e pensa que é algo que se dizia 300, 400 anos atrás. Não devíamos estar vendo isso em 2020”. Com maturidade surpreendente para idade, foi gigante: “fico triste pelos pais dos alunos”, “eu estou lutando por todas as meninas pretas que passaram e vão passar por isso (racismo)”, “Lamento pelos pais dos alunos”.

UM RELATO PESSOAL

Permita-me, Fatou, discordar um pouco de você. Você não está lutando somente pelas meninas pretas. Você está lutando pelo futuro do Brasil. Eu queria ter tido a sua coragem e consciência quando na sua idade. Eu era um garoto preto que, diante dos ataques racistas sofridos nas escolas particulares que frequentei, me calava. Muitas vezes, cheio de raiva e tristeza, engolia as lágrimas para não demostrar fraqueza, ou então quando não aguentava, corria para o banheiro e as derramava em silêncio, sozinho. Eu não me esqueço desses momentos.

Faltavam-me argumentos para confrontar os racistas, levar o assunto à direção da escola. Faltava-me o apoio que você teve de sua família. A gente não discutia esses temas em casa. Faltava-me uma personalidade que permitisse, quem sabe, revidar os ataques dos racistas com um soco bem aplicado na cara deles. “Fogo nos racistas!” dizem por aí. Mas eu sempre achei que a violência é o pior caminho. De alguma forma ou de outra, estava seguindo o caminho da paz e do diálogo que tão bem nos ensinou Mandela.

Foram muitos silenciamentos para que eu pudesse criar a coragem de denunciar os racistas, enfrenta-los. Não é fácil fazê-lo em um país que relativiza o racismo. Dizer “basta!” porém é libertador! E, antes tarde do que nunca, aqui estou. Escrevendo para um Fórum Permanente Pela Igualdade Racial por ofício. Isso sim é destino! Isso é o que o professor Abdias Nascimento definiu como quilombismo: a nossa resposta criativa ao genocídio do negro brasileiro.

Haverá um tempo em que a natureza do racismo será desmascarado por completo, sendo compreendido pela maioria dos brasileiros. Essa é a nossa luta. Quando esse dia chegar, e será em breve, acredite, primeiro “eles” vão nos ignorar. Depois, “eles” vão nos atacar como sempre o fizeram. Mais adiante, acuados, “eles” vão se defender. No final, nós venceremos. E essa vitória, Fatou, será a vitória de todos nós, ainda que já não mais estejamos brilhando nesse plano material – como o companheiro João, a companheira Ágatha e tantos outros brasileirinhos que, do Orum, do outro lado, nos guiam. Na mitologia da língua iorubá, Orum define o céu ou o mundo espiritual. Que assim seja!

* Julio Menezes Silva é jornalista, artista em formação. Coordenador de comunicação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e integrante do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial (FOPIR)