*Por Julio Menezes Silva
Hoje é dia de reverenciar três ancestrais e independentemente de quem você seja, caro leitor, e de quais são as suas orientações individuais, atente-se para o simbolismo da data do 14 de março. Explico: nasceram em 1914 Carolina Maria de Jesus, escritora, e Abdias Nascimento, professor, artista plástico e político oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Morreram a vereadora Marielle Franco e o seu motorista Anderson Gomes, em 2018, assassinados a mando de quem a polícia não sabe e o Estado brasileiro não quer descobrir. Por lei estadual no Rio de Janeiro, o dia 14 de março é Dia do Ativista pelo aniversário de Abdias, e Dia Marielle Franco de Luta contra o Genocídio das Mulheres Negras. Essas personalidades dedicaram a vida a resistir ao racismo brasileiro, o denunciaram ao mundo e deixaram mais evidentes o genocídio das populações negras.
Mas de que genocídio estamos falando? “O uso de medidas deliberantes e sistemáticas (morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimentos), calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo”. Essa definição está nas primeiras páginas do livro “O genocídio do Negro Brasieliro”, de Abdias Nascimento. Podemos afirmar que cada um deles – Carolina, Abdias e Marielle – foi atingido por diferentes facetas desse genocídio ao longo de suas vidas. Pagaram caro. Marielle levou quatro tiros na cabeça. Carolina morreu no ostracismo. Abdias não conseguiu uma sede para abrigar seu ambicioso projeto do Museu de Arte Negra (MAN). Mas no final das contas eles eram sementes e nós somos os seus frutos.
Se um dia o Brasil se livrar do racismo, certamente foi porque no caminho dessa construção houve um investimento pesado em educação de qualidade, desenvolvimento de pensamento crítico e ampliação do esforço de contar a história que a história não conta. Nós, negros e negras, somos responsáveis por reivindicar essa história, contar para os nossos filhos, pavimentar esse conhecimento para o futuro. “Nunca é tarde para voltar ao passado e apanhar o que ficou para trás” é o significado do provérbio Sankofa – cuja a imagem simboliza uma ave que olha para o próprio rabo. Outra interpretação possível para esse ideograma que compõe o conjunto de símbolos Adinkra, linguagem escrita dos povos Acã, é aprender com o passado, compreender o presente para construir o futuro. Eis aqui uma pequena colaboração para esse possível futuro e desejado.
Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977)
Escritora mineira, nascida em Sacramento (MG) em 14 de março de 1914. Após um episódio de racismo em sua cidade, no qual foi acusada injustamente de roubo e espancada até que o dinheiro aparecesse para que ela pudesse ser inocentada, mudou-se para São Paulo – onde chegou caminhado a pé. Estabeleceu-se na favela do Canindé as margens da marginal do Tietê. Teve três filhos. Cuidou deles sozinha, sem a presença paterna. A fome fazia parte do cotidiano de sua família. Catando papéis tirava o mínimo para o sustento. Dos papéis também vinham os pedaços de folha onde escrevia suas memórias, textos, poesias e seus sonhos. Um dia, o jornalista Audálio Dantas foi fazer uma matéria para a Folha de São Paulo sobre a vida na favela. Encontrou-se com Carolina Maria de Jesus, soube de sua história, leu seus textos. Publicou sua história no jornal. Dois anos mais tarde, em 1960, seus textos foram reunidos em Quarto do Despejo, livro que virou best-seller. Está hoje em 16 países, 46 idiomas. Vendeu quatro milhões de livros no exterior, 3 milhões no Brasil. É a mulher brasileira que foi mais publicada no mundo. Foi confrontada pelo stabilishment e o seu racismo estrutural. Carolina tronou-se uma referência de um “lugar de fala”, termo tão usado nos dias de hoje. Afinal Carolina não deixava que ninguém falar por ela. Morreu no ostracismo em 1977.
Marielle Franco (1979 – 2018)
Marielle Franco foi uma política brasileira. Formada em Sociologia (pela PUC-Rio) e com Mestrado em Administração Pública (pela UFF). Eleita Vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) no ano de 2016, com 46.502 votos. Enfrentou as milícias sem medo. Denunciou policiais corruptos. Defensora dos direitos humanos, coordenou, junto com Marcelo Freixo, a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Ao longo do período em que atuou como vereadora apresentou 16 projetos de lei, especialmente pensados em políticas públicas para negros, mulheres e LGBTI. Mãe, mulher negra de favela, mãe, lésbica. Foi assassinada ao lado de seu motorista Anderson Gomes em um 14 de março, em crime ainda não desvendado. O caso talvez seja o mais relevante atualmente para se compreender o contexto da política nacional e de como funcionam os mecanismos de racismo no Brasil.
Abdias Nascimento (1914 – 2011)
Político, escritor, jornalista, teatrólogo, professor. Nasceu em Franca (SP). Fundador do Teatro Experimental do Negro, quando os negros e negras pisaram no palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro pela primeira vez, dirigindo, atuando e produzido uma peça e o protagonizando o papel principal. Ajudou a organizar o primeiro Congresso do Negro Brasileiro. Fundou o jornal Quilombo. Foi curador do projeto do Museu de Arte Negra. Foi perseguido politicamente e preso diversas vezes em sua vida por resistir ao racismo. Viveu 13 anos em exílio durante a Ditadura Militar no Brasil. Voltou ao País e foi o primeiro parlamentar negro da Câmara dos Deputados. Fundou o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO). Participou da promulgação da Constituição Brasileira em 1988. Defensor da democracia e dos Direitos Humanos das populações negras, foi oficialmente indicado ao Nobel da Paz. Autor de “O Genocídio do Negro Brasileiro”e “O Quilombismo”, clássicos do pensamento social brasileiro. Foi secretário de Estado, Senador da República. Morreu aos 97 anos e é considerado uma das grandes personalidades brasileiras do século XX
UM RELATO PESSOAL
Revistando algumas anotações pessoais que mantenho em diários, cheguei ao dia 14 de março de 2018. Eis aqui alguns dos apontamentos registrados naquele dia.
“São 5h53 da manhã… No Fórum Social Mundial, observo, milhares de pessoas afinadas com o “mundo melhor é possível”. Neste hotel, que fica ao lado do Instituto Goethe de Salvador, vários turistas nacionais e internacionais dividem espaço. Aqui no looby, antes das seis, já há uma movimentação. Fico pensando no longo dia que terei pela frente e de que maneira posso contribuir para um mundo melhor. Acho que o melhor caminho a tal passa por mim, pelo autoconhecimento. Talvez me conhecendo melhor, melhor de mim posso oferecer ao mundo: dons, talentos, amor, compaixão. O que mais este mundo precisa?
Foi com esse espírito de esperança que me lancei naquele 14 de março de 2018. Com fé na humanidade, meditando e escrevendo – em um ato de prazer e fé.
“Animados, enquanto os hospedes tomam café, estão os funcionários do hotel, conversando com o sotaque inconfundível dessa terra, com sorrisos pouco comum para este horário, e um bom-humor inconcebível, pelo menos para mim, aquela hora do dia. E acredito que esta turma não deve ter levantado da cama antes das quatro da manhã, como é comum em nosso país, principalmente para os trabalhadores que moram afastados dos grandes centros. Que a luz e o bom humor norteiem o dia de hoje, e que eu possa ter uma noite de sono um pouco melhor do que a que tive – tivemos – hoje. Que seja assim!
Fechei o caderno. Tomei café da manhã com a professora Elisa Larkin Nascimento e o escritor Milsoul Santos. Saímos para o Teatro Martim Gonçalves, da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros (IPEAFRO) e parceiros realizariam o primeiro de uma série de três eventos em torno do lançamento da nova edição do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, de Abdias Nascimento. Poesia, música, pensamento crítico, esperança. O teatro pulsava, foi lindo. À tarde visitei a UFBA / Ondina que pulsava ainda mais: gente de várias partes do mundo, diferentes culturas, era o povo na rua cantando como uma reza, um ritual.
À noite, chegou a notícia da morte de Marielle. Eu já estava deitado, preparando-me para dormir. Pensei: “fudeu!”. Permaneci estático. A única reação possível foi escrever no diário. E lá está:
“Como é habitar um corpo afro-brasileiro que por destino “caiu” na cidade do Rio de Janeiro, que por destino chegou até aqui? O que me motiva a escrever é este turbilhão de acontecimentos simultâneos que fazem parte de nossa vida… A morte da vereadora Marielle Franco, do Psol, assassinada em circunstâncias ainda duvidosas… Eu votei nela nas últimas eleições. Mulher negra, jovem. Parecia para mim séria e honesta. Hoje sei de seu assassinato, no Estácio, bairro onde nasceu o samba. Eu fico indignado com a violência na cidade, apesar de já ter me “acostumado” a essa realidade no Rio.
De salvador, onde passei o dia em compromissos dentro do âmbito do Fórum Social Mundial 2018, que propõe “um mundo melhor é possível”, discutimos, agimos, poetizamos, criamos atividades em torno do “Genocídio do Negro Brasileiro”, livro de Abdias. As discussões giravam em torno justamente do genocídio ser além da morte física, mas esta quando chega, é fatal. Literalmente nos faz perder a esperança de tudo.
Eis que surge o Flamengo, com dois gols de jovem negro, de São Gonçalo, o pior IDH do Rio, um dos piores do Brasil, que faz dois gols contra o Emelec, fora de casa pela Libertadores. Aí compreendo a plenitude da vida: indignação, revolta, felicidade, amor, tristeza, raiva. Tudo isso habita esse corpo negro enquanto escrevo estas palavras, à meia noite, sentado em uma privada de hotel, com a porta (do banheiro) fechada para não incomodar a minha companheira que já está no décimo sono. A vida é meio sei lá, bicho. Eu só peço a Deus que me livre do mal. Amém!”.
O resto é história.
Viva o 14 de março! Que a data seja celebrada pelo protagonismo dessas personalidades e de outras tantas que fazem a diferença, em vida, para um mundo melhor. Queremos mais Carolinas, mais Nascimentos. Queremos #justiçapormarielle! A pergunta que fica é: quem mandou matar Marielle?
*Julio Menezes Silva é jornalista, artista em formação. É coordenador de Comunicação do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (IPEAFRO) e integrante do Fórum Permanente Pela Igualdade Racial.