8 de Março e a intervenção militar: a alegoria colonial do Brasil futurístico

por Carmela Zigoni

Viajemos dos Estados Unidos imaginados por Margaret Atwood em The Handmade’s Tale para o Brasil, ano 2018. No dia 16 de fevereiro, logo após o carnaval, o governo federal anunciava uma intervenção federal no Rio de Janeiro. Desde então, as notícias sobre as ações no Rio de Janeiro são cada vez mais “distópicas”

“Agora eu estou acordada para o mundo. Eu estava dormindo antes. É assim que deixamos isso acontecer. Quando abateram o Congresso, nós não acordamos. Quando eles culparam terroristas e suspenderam a Constituição, nós também não acordamos. Eles disseram que seria temporário. Nada muda espontaneamente. Em uma banheira de aquecimento gradual, você é fervido até morrer antes de perceber”.[1]

A reflexão é da personagem Ofred, da série The Handmade’s Tale (“O conto da aia”, ou da criada, em português), em que, diferentemente da maioria das narrativas imagéticas sobre o poder, as mulheres oprimidas são brancas, de olhos claros, norte-americanas, de classe média. Na história, essas mulheres são escravizadas por famílias abastadas – um projeto justificado publicamente pela necessidade de salvar o planeta e, nos bastidores do poder, pela necessidade de gestão das populações, dos úteros, da força de trabalho e dos conhecimentos.

A série, baseada no livro de mesmo nome escrito por Margaret Atwood em 1985, é classificada como “futuro distópico”, conceito em moda na atualidade que abriga muitos outros sucessos, como Black Mirror e Colony, ao que o El Pais caracterizou como “A nova era dourada das distopias”. Mas se a distopia é uma ficção anti-utópica, um futuro totalitário e violento imaginado, é só olhar um pouco mais além dos corpos brancos das atrizes hollywoodianas para identificar um padrão de sociedade que nada tem de fictício ou futurístico: para as mulheres negras, africanas na diáspora – e para outras mulheres não brancas de diversas nações e etnias –, esse enredo[2] é uma evidência histórica, uma experiência real e tragicamente presente desde o período colonial até a atualidade.

Rio de Janeiro – Forças Armadas fazem mais uma operação na Vila Kennedy, zona oesta da cidade (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

Viajemos, então, dos Estados Unidos imaginados por Atwood em direção ao Brasil, ano 2018. No dia 16 de fevereiro, logo após o carnaval, o governo federal anunciava uma intervenção federal no Rio de Janeiro, com a justificativa de “garantir a ordem pública”. Em 20 de fevereiro, a Câmara dos Deputados vota a favor do Decreto e, horas depois, o Senado aprova a medida. É a primeira vez que um governo civil lança mão de uma medida tão drástica, ainda que a intervenção federal nos estados esteja prevista na Constituição desde 1988. Na prática, o general do Exército Walter Souza Braga Netto passou a ser o responsável pelas ações das polícias Civil e Militar, dos bombeiros e da administração penitenciária.

Desde então, as notícias sobre as ações no Rio de Janeiro são cada vez mais “distópicas”: cadastramento com fotografias de moradores de favelas, revista ostensiva de crianças, sem falar em declarações públicas de militares questionando institucionalidades que apuram abusos de autoridades. Uma das operações foi batizada de “Separar Joio do Trigo”, ou seja, o apartheid está posto, mais uma vez, como política de Estado. Persiste o tratamento diferenciado entre territórios negros pobres e os territórios brancos de classe média e alta, destino, aliás, do lucro gerado com o crime organizado em forma de riqueza, paraísos fiscais, lavagem de dinheiro etc.

Nesta cena montada pelo Governo Federal como cortina de fumaça de nossos verdadeiros problemas decorrentes da sociedade desigual em que vivemos, as mais atingidas são as mulheres, em sua maioria negras. São elas que têm sistematicamente enterrado seus homens, companheiros, irmãos e filhos: se a média anual de assassinatos de jovens negros é de 20 mil desde a Constituição de 1988, em nosso mais recente período democrático, são cerca 600 mil homens negros tombados, dados que corroboram com as noções de extermínio e genocídio desta população; são elas que se organizam e lutam por justiça e por direitos, a exemplo das Mães de Maio e dos movimentos de mulheres negras contra a violência e pelo bem viver em âmbito nacional. Estamos falando, por óbvio, das mulheres que não são encarceradas neste processo – a taxa de mulheres presas aumentou mais de 500% em dez anos.

É preciso dizer que são estas mesmas mulheres que pagam proporcionalmente mais impostos hoje no Brasil e que, no período de maior distribuição de renda e criação de políticas sociais da nossa história, continuaram a ser as maiores vítimas de violência letal: de 2003 a 2013, caiu 9% o feminicídio de mulheres brancas, ao passo que aumentou em 54% as mortes de mulheres negras. São estas mesmas mulheres que, a despeito da reforma trabalhista aprovada em 2017, só tiveram os seus direitos de trabalhadores domésticas reconhecidos em 2012, 124 anos após a abolição oficial da escravidão no Brasil.

Neste mesmo cenário do absurdo, convivemos ainda no início de 2018 com a notícia da mãe presa com seu bebê recém-nascido em uma cela de delegacia. No mesmo dia 20 de fevereiro, quando se aprovou a intervenção federal, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que “mulheres grávidas e mães de crianças de até 12 anos que estejam em prisão provisória (ou seja, que não foram condenadas) terão o direito de deixar a cadeia e ficar em prisão domiciliar até seu caso ser julgado”. Essa decisão impacta diretamente milhares de mulheres negras: segundo o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), não há dados oficiais a respeito, mas estima-se que um terço da população carcerária feminina (hoje composta de mais de 42 mil mulheres) se enquadre na categoria de gestantes ou mães de crianças pequenas. A maioria delas são pretas ou pardas.

Ainda que a decisão do STF seja altamente positiva, ao analisarmos os dados do genocídio da juventude negra, pode-se pensar no que estas mães encontrarão ao retornarem às suas comunidades. Seria um tipo de “ventre livre” pós-moderno? Se considerarmos o que afirmou o próprio ministro da Justiça Torquato Jardim, sobre a intervenção federal, essas crianças (negras) não estarão a salvo em nenhum lugar: “Tem 1,1 milhão de cariocas morando em zonas de favelas, de perigo. Desse 1,1 milhão, como saber quem é do seu time e quem é contra? Não sabe. Você vê uma criança bonitinha, de 12 anos de idade, entrando em uma escola pública, não sabe o que ela vai fazer depois da escola”.

Seria, então, uma distopia para nossas hegemonias brancas, masculinas, proprietárias, pensar em um futuro com verdadeira liberdade – física, moral, psicológica – para as mulheres negras? Não deveria ser esta, portanto, a utopia política de quem defende uma sociedade justa e democrática?

Vivemos em um mundo onde o controle dos corpos femininos e negros é estruturante para a manutenção dos poderes econômico e político constituídos. Não é por acaso que as primeiras medidas após o golpe parlamentar no Brasil foram o congelamento do orçamento para direitos humanos, direitos das mulheres, igualdade racial e juventude. Os donos do poder compreendem perfeitamente que é minando as comunidades mais vulneráveis que se reprime a luta por melhores condições de vida. Uma fórmula colonial atualizada e trespassada por novas tecnologias de vigilância e controle.

Esse processo não é só brasileiro. Em toda a América Latina as mulheres indígenas enfrentam problemas semelhantes, assim como os jovens negros nos Estados Unidos. As formas de manutenção da subalternidade dos negros após o fim da escravidão oficial, tanto lá como cá, são perenes e sofisticadas: em sua versão contemporânea, o encarceramento, mais do que uma medida de repressão à violência, é uma forma de alijamento dos negros (e outros grupos étnicos e raciais em oposição ao branco fabricado em cada parte do mundo), e também um mercado muito lucrativo, pois manter tais estruturas implica em investimentos públicos que são direcionados para pagamento de empresas terceirizadas de alimentação, vestuário e segurança.

Angela Davis, em Freedom is a Constant StruggleFerguson, Palestine and The Foundations of a Movement (Haymarket Books, 2016) [A liberdade é uma luta constante: Ferguson, Palestina e as fundações de um movimento], chama nossa atenção: a vigilância e militarização, incluindo escolas que se parecem prisões nas comunidades negras periféricas dos Estados Unidos, definem cada vez mais nossas sociedades, “onde o que é chamado de ‘segurança’, sob a égide do Estado neoliberal, reforça não somente a privatização da segurança mas a privatização do aprisionamento, do bem-estar social, assim como a privatização da saúde e da educação” (tradução livre).

Como sugerido pela filósofa Donna Haraway em 1985, no livro Antropologia do ciborgue: vertigens do pós humano (mesmo ano da publicação de Handmade’s Tale), o mundo estaria se abrindo para uma nova biopolítica, na qual comunicação, tecnologia/ciência e política estariam sinergicamente atuantes para a configuração de sistemas de opressão e controle. A autora, de maneira otimista, apontava para a necessidade de os movimentos de mulheres capturarem essa configuração para a libertação necessária das identidades coloniais.

Ainda que os movimentos sociais de mulheres, LGBTI, de mulheres negras, do campo etc., tenham trabalhado incessantemente para isso, a capacidade de influência desses movimentos é muito menor do que aquela dos grupos dominantes. Segundo relatório da Oxfam (2016), estamos em um momento de forte concentração de renda e reescravização da força de trabalho em âmbito planetário. O gênero e a raça seguem sendo elementos cruciais para a reprodução do capital, dos privilégios e das desigualdades.

É necessária e urgente uma transição nos discursos políticos de defesa de direitos entre a noção de “pautas políticas da identidade” para um outro enunciado, a saber, “gênero e raça são estruturantes das relações econômicas e sociais”. Os omissos de hoje podem estar a salvo, como aponta nossa personagem do mundo distópico, pois a estrutura de privilégios implica em zonas de conforto para alguns grupos da sociedade, inclusive a classe média de esquerda.

Mas o capitalismo autoritário, no qual militarização e algoritmos atuam juntos para efetuar a gestão das populações, está aí para provar que saímos de um curto período histórico de emergência de novas classes médias para um possível futuro com um número muito maior de pobres do que registramos hoje. Se não pararmos para priorizar as pautas políticas de mulheres e, principalmente, levar a interseccionalidade a sério e olhar para as mulheres negras e pobres, não daremos conta de organizar lutas legítimas para enfrentar os horrores do autoritarismo. O Rio de Janeiro é, afinal, um laboratório para o Brasil, nas palavras dos próprios militares.

Os movimentos de mulheres se organizaram para atos em todo o país neste 8 de Março. Que possamos olhar para os absurdos do presente e agir: quando falamos em direitos das mulheres estamos falando do direito de toda uma sociedade à democracia e à liberdade.

 

*Carmela Zigoni é assessora política do Inesc.

[1] Trecho original: “Now I’m wake to the world. I was asleep before. That is how we let it happen. When they slaughtered Congress, we didn’t wake up. When they blamed terrorists and suspended the Constitution, we didn’t wake up either. They said it would be temporary. Nothing changes spontaneously. In a gradually heating bathtub, you’d be boiled to death before you knew it.” (Handmade’s Tale, Temporada 1, Episódio 3).

Fonte: Diplomatique